Erika - opinião sobre As Naus

[ Desafio Literário | Junho: Viagem no Tempo ]

Sinopse

Neste romance magistral, António Lobo Antunes subverte as formas narrativas tradicionais, sobrepõe tempos e figuras históricas para narrar o retorno dos heróis e navegadores portugueses a Lisboa (aqui denominada Lixboa), em plenos anos 1970, desiludidos com o fim da malfadada colonização africana.

Pedro Álvares Cabral, Luís de Camões, Diogo Cão, Vasco da Gama – esses e outros nomes, inclusive estrangeiros, como Miguel de Cervantes – retornam a Portugal como pessoas comuns, com seus vícios e fraquezas, numa espécie de epopeia às avessas. Lobo Antunes reconta suas vidas na África, diferentes em todos os sentidos das versões consagradas, e os coloca, ao longo de sua narração vigorosa, como jogadores de cartas, beberrões, aproveitadores.

Suas desventuras trágicas, por vezes burlescas, fazem de As naus um clássico na obra de Lobo Antunes, e um dos livros mais originais da ficção contemporânea.

[...] a escrita de António Lobo Antunes já é, por si só, um baita desafio. Afora a exigência extrema do poder de dedução para entender construções com palavras que nunca vi na minha vida (porque seu eu recorresse ao dicionário a cada dúvida, não terminaria a leitura nunca!), o texto de As Naus é impregnado por uma atmosfera surrealista que desafia – estou abusando desse termo – o entendimento do leitor. Desafia, mas também diverte.

Já faz alguns anos que tive o primeiro contacto com a prosa singular de Lobo Antunes. Foi em 2009, quando li Os Cus de Judas para a prova de ingresso no mestrado. Agora, lendo As Naus [...], eu me recordei de quão singular é a experiência de passar páginas e páginas perseguindo um fluxo de raciocínio intenso, com ideias amontoando-se em cima de ideias e sem chance de perder um detalhe, pois cada detalhe, neste caso, faz toda a diferença. Em resumo: ler Lobo Antunes, pelo menos para mim, é dificílimo, mas, como leitora, trata-se de um desafio [...] indispensável.

Agora imagine ler uma prosa com essas características enfocando uma história que se desloca no tempo e no espaço. Então.

Lobo Antunes publicou As Naus em 1988, 14 anos após a Revolução dos Cravos, e o que ele mais faz em seu livro é justamente dialogar com a formação da identidade nacional, revisitando a história e contrapondo o passado glorioso de Portugal a um presente decadente. Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama, Luís de Camões, Diogo Cão, Fernão Mendes Pinto e tantos outros heróis do país são “resgatados” de suas posições históricas e retornam a um Portugal do século XX que não lhes dá a mínima importância. As naus mencionadas no título da obra são o elo entre o Portugal Império e o Portugal pós-colonial – são elas que trazem de volta ao país vários desses heróis que estavam na África e na Ásia – este último explorado por meio da faceta mais humana de seus heróis, então destituídos de sua aura mítica.

Assim, o autor de facto brinca com seus personagens (como na passagem em que o rei D. Manuel é julgado por uma série de infracções de trânsito, abordado pela polícia quando levava nada mais nada menos do que Vasco da Gama no banco do carona), mistura datas, eventos e minimiza a relevância de tudo aquilo que a história regista com pompa e circunstância. Olha aí mais um exemplo de como Lobo Antunes flerta com seu enredo, ridiculariza heróis de seu povo e dobra o fluxo da história sem a menor cerimónia, em trecho narrado por Pedro Álvares Cabral:

Foi então que topámos com um grande aparato militar de castelhanos protegendo uma tenda alumiada de barraca de feira, centenas de estandartes, bandeiras e cozinhas de campanha, cirurgiões que amolavam bisturis e ilusionistas que divertiam a tropa, e uma sentinela nos informou que o rei Filipe se reunira com os seus marechais na rulote do Estado-maior a combinar a invasão de Portugal, porque D. Sebastião, aquele pateta inútil de sandálias e brinco na orelha, sempre a lamber uma mortalha de haxixe, tinha sido esfaqueado num bairro de droga de Marrocos por roubar a um maricas inglês, chamado Oscar Wilde, um saquinho de liamba.” (pág. 133)

O tempo todo é possível perceber esse “pé lá e pé cá” estabelecido pela constituição de uma narrativa baseada numa viagem no tempo e no espaço. Um exemplo disso é a grafia de palavras como Lisboa, Luanda e reino, grafadas no texto do escritor português como “Lixboa”, “Loanda” e “reyno”, obedecendo à ortografia do século XVI, época compreendida no período das Grandes Navegações.

A questão do narrador também é algo a ser observado. Não sou especialista em António Lobo Antunes, nem em história portuguesa – por isso me fizeram falta diversas referências as quais precisei pesquisar por fora no decorrer da leitura –, mas as duas experiências que eu tive lendo as obras desse autor me deixaram fortes impressões sobre a singularidade de um narrador que, além de frequentemente se valer de um fluxo de ideias intenso, é composto por uma mistura de vozes de personagens, ou seja, trata-se de um narrador colectivo, que se reveza sem maiores avisos ao leitor.

A leitura de As Naus não foi nada fácil para mim e talvez por isso mesmo tenha me motivado tanto. No decorrer do processo, achei outros livros relacionados directa e indirectamente ao tema da história de Portugal para engrossar a minha lista de leituras, além de artigos sobre o livro que guardei para ler agora, que já finalizei a resenha e organizei minhas ideias sobre essa obra de Lobo Antunes. E esses desdobramentos são óptimos, porque significam acima de tudo que o livro me cutucou de verdade, que fez diferença no meu exercício de leitura e que o desafio [...] de entendê-lo me impulsionou a buscar outras fontes de informação sobre esse tema.

[...]

por Erika
29.06.2012
[texto revisto por José Alexandre Ramos]

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