Anna: opinião sobre Auto dos Danados

[...] acho que fiz uma boa descoberta com Auto dos Danados. Cada capítulo do livro é narrado por um personagem diferente, quase todos sem nome (ele fala de “o dentista”, “a mongoloide”, “a casada com o dos bondes”, “o engenheiro” etc) e sem qualquer introdução — você tem que pescar depois de iniciado o capítulo quem é mesmo que está falando. Conta de uma família portuguesa falida, que se reúne durante as festas do povoado porque o avô está moribundo. A partir desse reencontro, vai se desenrolando as misérias da família: um casamento falido, onde ambos os cônjuges sabem dos amantes um do outro; um tio que já dormiu com todas as mulheres da família — e do povoado —, incluindo sua cunhada débil mental (de quem tem uma filha, e com quem acaba também tendo uma filha); casamentos por interesse; o patriarca que forjou a morte da própria esposa porque esta o abandonara; a mãe que abandona os filhos e o marido e vai morar no Rio de Janeiro com um surfista e por aí vai.

O realismo e o exagero com que as misérias da família são narradas de forma crua e seca mostra como gerações e gerações podem se manter sem amor, sem cuidados e sem nada a se apegar, a não ser o dinheiro que eles esperam depois da morte do velho. Mas o que resta da fortuna que o velho mesmo dilapidou em anos de jogos, bebidas e mulheres acaba sendo gasto em tratamentos para os dois filhos com problemas mentais e no tratamento do próprio pai. Com a aproximação da Revolução dos Cravos, a família, afogada em dívidas e com medo dos comunistas, foge na mesma noite da morte do velho para a Espanha.

A cena da morte do patriarca é narrada em conjunto com a cena da morte do touro (está havendo uma tourada, que fecha os festejos que estão ocorrendo na vila) e, pra mim, é o ponto alto do romance, onde todos os personagens vão se mostrando profundamente aliviados com isso. Não há máscaras para cair, todos estão ali com suas misérias e usuras expostas, sem esconder nada de ninguém. O período narrado é de grande catarse pra todos, onde não têm nada a esconder nem jogos a jogar. É tudo exposto, de forma feita, na sua miséria psicológica e mesmo material, de gente vivendo em subúrbios fedorentos e no meio de relações de traição e descontentamento.

“Está morto, disse eu à família a compor a gola do pijama do velho, a arrecadar os instrumentos, a preparar-me para abandonar o quarto, descer as escadas, enfrentar os perdigueiros, tornar a Reguengos na ambulância do hospital. Está morto, disse eu, arrastem-no da arena pelos cabos que lhe seguram os cornos, amarrem-lhe as patas e levem-no e dividam-lhe a carne e vendam-na no talho, podem embebedar-se dois ou três dias com o dinheiro do finado, esse bicho enteiriçado e grosso, sem majestade alguma, que sangrava e que sangrava ainda.”

por Anna
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21.10.2013

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