Alfredo Monte: opinião sobre O Arquipélago da Insónia


«e portanto não tenho senão uma mulher inventada a respirar do lado da consola numa cama de estilo, a prima Hortelinda a mostrar-me o livro

- Não constas aqui»

«deve ser o fim ou qualquer coisa parecida com o fim…»

Por conta de Drummond e a “estranha ideia de família viajando através da carne”, voltei a uma leitura que deixara interrompida, não porque o romance não fosse bom, muito, muito pelo contrário, mas por atribulações e vicissitudes pessoais: O ARQUIPÉLAGO DA INSÓNIA, de António Lobo Antunes, ainda sem edição brasileira.

Reli esta semana as cem páginas iniciais e depois o livro inteiro e portanto já posso dizer, de saída, que é uma das grandes obras do maior escritor de língua portuguesa do momento. É  parecido, sob alguns aspectos, com Eu hei-de amar uma pedra, inclusive pelo intrincado da narração, intrincado não pelos factos em si, mas porque nós os acompanhamos em toda a sua concreticidade, se é que se pode dizer assim, de uma concreticidade visceral, acachapante e depois eles são des-realizados, se tornam fantasmáticos, recombinados, redistribuídos, ressignificados: como em Faulkner, no mundo de Lobo Antunes o tempo enquanto sucessão não existe.  Porém, a partir da segunda parte (eu estava no começo dela quando interrompi a leitura em novembro), ficamos sabendo que a narrativa em parte está a cargo de um autista (o irmão do narrador insone, que espera a manhã, que virá dali a pouco, e no entanto nunca será manhã). Agora: quem não tem o seu quê de autismo nesse universo todo regido pela incomunicabilidade? Veja-se na terceira parte, quando Maria Adelaide (a cunhada do autista) assume seu lugar na roda de narradores (a função primordial de todos: narradores, nessa vida que é absorvida monstruosamente por um livro continuamente escrito: «que espécie de livro é este que custa tanto escrever?»):
«eu com seis anos no quintas e cinquenta aqui e no entanto a mesma pedra a esconder-me dos outros convencida que havia outros e não há outros…»;
ou ainda:
«e portanto faleci em criança, as sombras da santinha e do enfermeiro sob a sombra da serra

- Diz-me se cheiro a defunta não mintas

e o meu cunhado a olhar para mim sem olhar para mim»
e mais adiante:
«e o pai do meu sogro a descer do mulo diante da casa que não existe chegado de uma herdade que não existe…»

«quantas vezes pedi ao meu marido que levasse o irmão de volta ao hospital e eu pudesse esquecer que faleci e achar que estou viva, não me habituo a Lisboa, estas avenidas que me assustam e esta gente que me ignora, quantas vezes perguntei ao meu marido

- Por que tenho de morar com o teu irmão

e o meu marido um gesto que se dissolvia no garfo (…)

- Porque não tenho mais ninguém»…
Além da revelação do autismo do narrador inicial (que cria um poderoso mundo primordial na primeira parte e depois gera uma formidável incerteza quanto ao que poderia haver de conteúdo “real” ali, quando o localizamos num hospital, sendo visitado intermitentemente pela família), um dos achados de O ARQUIPÉLAGO DA INSÓNIA é o personagem da Prima Hortelinda, uma espécie de Parca portuguesa, que consulta no seu caderno quem deve morrer (e a região rural onde vive já moribunda, quase sem mortos para serem apontados no caderno, e o narrador insone eternamente poupado, para viver o inferno da lembrança, mas que lembranças exatamente?).

A morte como ser compassivo, suas intermitências:
«supõe-se que a morte nos quer mal, vai-se a ver e mentira, não gosta do que faz (…) quantas ocasiões deve ter perdido

- Por que não entregam este serviço a outra?»
ou:
«e, depois, claro, a pergunta do costume

- Por que eu?

como se houvesse um motivo, não há motivo algum»
e se a morte é assimilada à compassiva Prima Hortelinda, Deus é assimilado à figura do avô:
“perguntei-lhe [ para Prima Hortelinda]

- Quem é que manda em você?

e um olhar para o tecto

- Ele já não sabe mandar porque até Deus, com a idade, se lhe turvou a cabeça, amolecia num banco a repetir perplexo, esfregando as mãos nos joelhos

- Que estranha coisa é a vida»
No entanto, eu confesso aos meus leitores: eu não saberia nem como nem por onde começar uma análise “global” e que se pretendesse esclarecedora e totalizante de O ARQUIPÉLAGO DA INSÓNIA. Ele me derrota, nesse sentido, assim como já fui derrotado por outros Lobo Antunes ou poir Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño.

O romance de Lobo Antunes tem um impacto sensorial, em sua matriz de imagens e falas que vão aparecendo e reaparecendo, recombinando-se, e dando a sensação de que entramos realmente na mente dos personagens. Fisicamente, eu quero dizer. Há sempre algo associado a alguém (o pai e o cavalo; o avô e a mula; a avó e a chávena no pires; Prima Hortelinda e os goivos; a mãe e os baús perfumados); há as inúmeras modulações das afirmações que reaparecem e vão criando o referido impacto: «no tempo em que nada faltava na casa?»; «indiferença do meu irmão que continua comigo nesta casa em que apesar de igual quase tudo lhe falta»;  «na casa em que apesar de igual tudo principiava a faltar-lhe»; «o meu avô que continua nesta casa a quem tudo falta, apesar de igual»; «conforme se desfez a casa em que apesar de igual tudo lhe falta hoje em dia». A questão é justamente essa: quando é “hoje em dia”, quando tudo falta na casa, apesar de igual, casa que porventura talvez nem tenha existido: «Qual a minha idade hoje em dia e quantos anos se passaram desde aquilo que contei?»; «qual  é a minha idade, quantos anos passaram, catorze, vinte, trezentos ou nenhum».
...
«Quem anda de noite misturado com o vento à roda da casa e eu para o meu irmão

- Não ouves?

procurando os intervalos das janelas para espiar a gente, um defunto que se perdeu sem encontrar a travessa onde mora ou as doninhas que não respeitam ninguém obrigando-me a trazer a caçadeira  e a disparar ao calhas, quando de manhã as procuro os milhafres levaram-nas e há um texugo a lamber restos de sangue escondido nas ervas porque são ervas o que hoje temos na herdade de modo que a serra maior, a lagoa nos seus refluxos miúdos e vozes a falarem de uma época em que o meu irmão e eu não havíamos nasido, onde os campos cresciam e o meu avô rico a ordenar isto e aquilo, chegou da vila com o feitor e a mulher do feitor de que se serviam os dois na barraca a partir da qual se construiu esta casa, escutavam bandos de corvos evadidos das nuvens onde se guardam os pássaros  por ordem, estorninhos, gralhas, cegonhas que a mão de não sei quem distribui, se chamasse uma das empregadas da cozinha ninguém, no caso de subir ao compartimento dos baús nenhum perfume na roupa, vamo-nos embora amanhã, onde o mulo, o cavalo e as doninhas não cheguem, pela mesma vereda que a mulher do feitor seguiu sem dizer fosse o que  fosse abandonando a carne ao lume e a agulha espetada no novelo como se fosse voltar; o meu avô e o feitor acertaram no rastro apesar de tanto cardo e tanta pedra porque ao principiar a colina os pés  se arrastavam e alguns caules quebrados, alcançaram-na numas hidrângeas de ribeiro a olhar os gafanhotos que saltavam na corrente se é que  podia chamar-se corrente a uma linhazita incapaz de contornar os seixos, deu por eles de olhos mansos, viu a agulha de crochet na palma do feitor e pergunto-me se a terá sentido entre duas costelas absorvida como estava pelos gafanhotos… o feitor experimentou a agulha mais acima, no ponto em que o coração vai dando corda ao corpo e inventando ideias e a mulher amontoou-se sem cair, ou seja alargou  sentada dizendo qualquer coisa como sucede ao calcário se lhe encostamos o ouvido e uma artéria secreta a latir, a latir, a subir de tom, a parar, ao parar a cabeça no peito e foi tudo…»
    
[...] Apesar de repetir processos narrativos de livros anteriores (processo que, creio eu, chegou ao auge em Eu hei-de amar uma pedra), o que impressiona no romance é sua primordialidade. Parece que estamos vendo em acção o “id” freudiana, sem nenhuma censura ou repressão, e as imagens, fantasias e fábulas pessoais (o “romance familiar”) são vistos de forma nua e crua e não sabemos se estamos numa alucinação, numa reconstrução memorialística, num eterno retorno, num pesadelo circular: essa herdade, erguida pela vontade balzaquiana do patriarca, o avô, cuja mãe abandonou o pai (que se suicidou com uma tesoura no pescoço) e foi viver com o padre da vila, renegando o filho (depois o feitor, a mando do avô, assassinará o padre)… essa herdade, que não terá um herdeiro forte que a herde, pois o avô “pegou” a avó para ser sua esposa, mesmo assim usando todas as mulheres do local (a mulher do feitor, as futuras empregadas, a mulher do filho, menos a filha do feitor, que se oferece, mas pode ser sua própria filha), só que a perdeu para o filho, o Idiota, o fraco, aquele que não consegue nem ser suficientemente homem para mandar na mulher, que escolheu entre as empregadas da cozinha, mas que serve sexualmente o pai dele e transa com um ajudante de feitor (que pode ser outro filho do padre), o qual pode ser o verdadeiro pai do narrador, um filho desprezado por todos, ao contrário do irmão mais novo, talvez legítimo, mas esse sim o verdadeiro Idiota, sem noção de nada… mas aí a herdade empobreceu, a vila despovoou-se, tudo ficou mais pobre, só restam os omnipresentes retratos em suas molduras de gente morta que prossegue nos retratos e nas lembranças como gente viva, talvez até mais viva que os vivos,  como pressentimos numa frase genial logo na primeira página (quando fala da avó morta): «…fixando-me com um olhar de retrato que atravessava gerações…». Cinquenta páginas depois: «…já só faltamos o meu irmão e eu na parede para que a família inteira em molduras ou seja há retratos nossos de criança, não de hoje… além das fotografias sobra-nos o cavalo e as vozes dos finados que conversa, conversam…». Mais adiante: «De maneira que fico aqui à espera porque com um  bocadinho de sorte pode ser que alguma coisa aconteça, uma pessoa chegue da vila para ficar connosco ou levar-nos consigo e nem já da vila se calhar; meia dúzia de postigos que resistem e os parentes dos retratos aguardando que a lâmpada do fotógrafo os desperte para regarem as hortas…»

por Alfredo Monte
Monte de Leituras
22.05.2012

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