Luiz Guilherme de Beaurepaire: opinião sobre O Manual dos Inquisidores

O Manual dos Inquisidores é uma inquisição do passado sobre o presente obscuro. Esse presente que padece com o peso da memória e sofre a debilidade quotidiana do simples existir. A trama procura desenvolver uma saga familiar fixada na ideia da casa, na figura do pai, o fantasma da mãe ausente e as mudanças impostas pelo tempo.

O livro fala sobre o fascismo em dois momentos: antes e depois da Revolução dos Cravos, cuja narração é feita por personagens que se sucedem e se alternam. É um romance escrito pelos próprios personagens que se revezam em depoimentos e comentários.

Lobo Antunes trabalha o romance no sentido de torná-lo intemporal, construindo uma amálgama do ontem e hoje. Os personagens são tipos sociais que não mostram nenhuma evolução com o passar dos anos, juntamente com a sociedade, e tornam-se difíceis de serem julgados. Não há personagens revolucionários, mesmos os pobres são conservadores. Eles têm o ponto de vista dos dominadores, reproduzem o discurso competente da ignorância em que vivem, devido a uma acomodação adquirida com o passar dos anos. Todos estão em um lado só. Todos são compostos a partir de monólogos interiores, delirantes, desagregados e fracassados, na finitude de seus próprios projectos existenciais, cauterizando sentimentos. As lutas sociais aqui não são o resultado da oposição entre a classe trabalhadora e o capital, mas um conflito de ordem cultural, religiosa e psíquica.

O romance é uma inquisição sobre a nulidade de um presente, cujo único projecto é a evocação do peso da memória. No entanto, o quotidiano é uma das forças maiores nos mecanismos da construção deste texto. O plano da representação ganha nele densidade social aguda e historicidade. O romance não é histórico, mas encontra em seu caminho a história. Razão e a desrazão confundem-se. O passado, o presente e o futuro são vividos simultaneamente, como filamentos da memória reflectindo-se no espelho quebrado das perdas da identidade. Uma fragmentada narrativa que, em vez de enfatizar a estética do fragmento, provoca a perda da comunicação de uma ideia, de uma representação distorcida do espaço comunicativo.

Relações de poder frustradas, relações amorosas fracassadas, que mostram um modus vivendi marcado por carências afectivas.

Quem são os inquisidores? Esse romance inquire sobre o passado, mas a partir da diversidade desconexa de identidades, ele inquire um país patriarcal, semi-agrícola, onde a corrupção, a ganância, a solidão, a ignorância generalizada, tanto dos poderosos quanto da gente humilde acabam por fazer um cocktail explosivo. O Manual dos Inquisidores nos fala sobre a relações de poder de um Ministro de Salazar - à volta do qual girará a própria narração do livro - que possuía “poderosas credenciais”, condecorado com a ordem nacional do: “você sabe com quem está falando?”

Mas, apesar de possuir tal “condecoração”, fora abandonado e traído pela esposa e a marca da traição estará presente em suas relações com as outras mulheres de uma forma ressentida. Um homem iludido, prepotente que acabará derrotado pela idade, pela senilidade. Um ministro despojado do amor e do poder, exilado numa clínica onde virá a perecer. Uma mistura da boçalidade camponesa e militar. Um perfil que reflecte a incultura, a passividade intelectual, as decepções afectivas e os impulsos do sexo, que representam parte da amostragem dessa história.

Todas essas facetas e uma narrativa envolvente montam o cenário plural que nos leva a acreditar na impossibilidade de uma comunicação efectiva nas relações humanas e a pensar na realidade que permeia o Manual e torna a todos inquisidores - réus de si mesmos.


Luiz Guilherme de Beaurepaire
Bons livros para ler
07.01.2011

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