José Alexandre Ramos: Primeira angústia – capítulo final: o inferno depois do inferno


De forma a encerrar a catarse de tudo quanto fazia sombra ao jovem escritor António Lobo Antunes, faltava-lhe escrever sobre a profissão que exerceu: médico psiquiatra de um hospital de saúde mental que então (1980, ano em que foi publicado este livro) ainda se designava por manicómio.

Ponto de partida para percebermos o quanto a personagem que discursa (o psiquiatra, o ex-militar, o escritor) repudia o modo como eram tratados os doentes de uma instituição daquele tipo, àquela época. Percebemos que o título nada tem de casual, uma vez que a personagem, depois de falar sobre o terror da guerra e sobre as suas ambiguidades pessoais em Memória de Elefante e Os Cus de Judas (livros que apelido de  e 2º capítulos da primeira angústia do escritor), vem dar-nos conta de uma verdadeira descida ao inferno que é trabalhar numa instituição cujos responsáveis (estado e recursos humanos) ainda faziam tratamentos antiquados, e tratavam os doentes como seres inferiores, patente na forma como os médicos, enfermeiros e demais pessoal se dirigem aos doentes na segunda pessoa do singular.

A acção do livro centra-se numa viagem de regresso de férias, entre o Algarve e Lisboa, em que a personagem já conhecida dos capítulos anteriores e acima referidos, torna a discorrer sobre as suas angústias, medos, sofrimento e frustrações, no seu retorno ao trabalho como psiquiatra do Hospital Miguel Bombarda. Nestes relatos (são doze longos capítulos) vai evocando episódios com os doentes e médicos da instituição: aqueles apáticos e submissos, estes distantes e opressores.

De facto, chega-se a sentir que o purgatório é ali mesmo: os doentes são as almas atormentadas pelas suas aflições e os médicos, enfermeiros e auxiliares os demónios que lhes infligem de castigos, lhes incitam ao mal, e condicionam as suas acções. Ou, de um ponto de vista social (que podemos admitir que esteja aqui a ser metaforizado), os psiquiatras são os senhores poderosos, distantes, o restante pessoal capatazes e/ou colaboracionistas, e os doentes a malha servil, submissa e resignada. Disto parece querer descartar-se a personagem que, julgámos numa primeira interpretação, não alinhar com os outros médicos, mas, talvez por força das circunstâncias ou ainda por simplesmente não querer incomodar-se, acaba por ter comportamento semelhante. Porém, ainda assim, revê-se (em sonhos recorrentes) como se fosse ele próprio um dos doentes, sentindo na pele a forma desumana, carecida de afecto e compreensão, como os utentes são tratados. Intercala (e mistura) estes episódios com outros da sua vida pessoal (relações familiares principalmente) e de um outro inferno já conhecido: o da guerra, e mesmo que tivesse passado nessa circunstância os maiores terrores da sua vida, vendo matar e morrer, considera que o verdadeiro conhecimento do inferno se faz numa instituição como o manicómio onde trabalha, deixando a dúvida sobre quem serão os verdadeiros loucos ou maníacos: os doentes ou os médicos?

Do ponto de vista estrutural e de estilo, é notória a sede de busca de uma voz própria, de um discurso alternativo no romance, como já havia deixado evidente nos dois livros anteriores. Mas este Conhecimento do Inferno é também, na minha opinião de leigo, uma espécie de purgatório para o escritor: primeiro sentimos que é um livro que vem depois dos dois primeiros, o narrador fala na terceira pessoa do singular, ainda existem frases muito barrocas, mas a partir de cerca de metade do texto, o discurso vai mudando, ora lenta ora bruscamente, para a primeira pessoa do singular, e começam, pela primeira vez no estilo de Lobo Antunes, a fragmentação e a justaposição das personagens – aqui há um senão, a personagem que discursa ainda é sempre a mesma – o narrador – , mas as vozes escondidas das personagens, digamos, “passivas” do livro começam a libertar-se, em pequenos trechos de diálogo. E por isso, fica como uma amálgama daquilo que conhecemos do engenho do escritor: um caldo onde está ainda por definir tudo o que podemos testemunhar nos trabalhos posteriores de António Lobo Antunes. Considerações estas façam talvez mais sentido para quem relê o romance depois de já ter conhecido uma boa parte dos seus livros. Para um principiante na obra, este livro não é aconselhável como estreia, só se for lido no seguimento de Memória de Elefante e Os Cus de Judas.

Apesar de tudo, e que o livro seja o inferno depois do inferno, tem passagens belíssimas, depuradas mesmo, e os últimos capítulos deixam no leitor uma sensação agradável de ter lido um bom livro apesar da confusão inicial.


José Alexandre Ramos
07.09.2011

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