Joaquim Gonçalves: opinião sobre Sôbolos Rios Que Vão


Ou não havia comboios ou não paravam ali” (pág. 170)

Os comboios, poucos, passam numa estação deserta. É raro o que pára até que, por falta de passageiros, deixam de o fazer e passam rápidos deixando o funcionário da estação triste, cabisbaixo, bandeirola sem serventia debaixo do braço. Como a vida que se vai esvaindo mas a assistir à pujança de outras ainda em trânsito, em velocidade de cruzeiro. Até que cheguem à meta.


Ler um livro é ler a vida. Vidas – outras vidas. Vividas, inventadas, ou vividas e transformadas em história. Em histórias. Com verdades e mentiras. Com mentirinhas que a imaginação transforma em verdades no seu contexto. Com verdades que desejamos mentiras. E o contrário.

Para chegar a esse ponto é preciso que alguém o escreva. Escrever um livro digno de ser lido por outrem é um processo alquímico ao alcance de apenas alguns. Não direi que iluminados mas, sim, com arte para trabalhar as palavras e juntá-las em ideias. E daqui se criou a profissão de escritor que, para sobreviver, tem de escrever muito. Umas vezes melhor, outras, menos bem.

Do muito que o obreiro escreva nem tudo terá a mesma qualidade. Até porque esse é um conceito com alguma carga de subjectividade balizada pelo gosto e disposição de quem lê. E também pelo saber. Mas também desse que escreve.

Não é fácil conjugar o espírito de quem escreveu, a disposição com que o fez, com o do leitor. O encontro entre o leitor e o escritor, por via do livro, é um momento único. Uma explosão.

Avaliar um escritor profícuo por uma ou outra – ou outras – obra menos bem conseguida será pretensiosismo ou imodéstia. Ou não. Será, sobretudo, injusto. Ler um autor é ler toda a sua obra. O que é certamente diferente de ler um ou outro livro. Mas só daquela forma se pode tecer uma crítica justa.

Por outro lado, e para o leitor que lê apenas por divertimento puro, despreocupado com a forma mas exigente com o enredo, é normal que caia a crítica dura quando o livro não tem aquilo a que se chama um enredo.

Acabar de ler um livro e não o largar. Ficar a olhar para ele. Passar com a palma da mão pelas capas num gesto carinhoso disfarçado de limpar o pó que não há. Volteá-lo nas mãos. Depois, pousá-lo na mesa como feito de cristal.

Este não é um livro para qualquer um. É um livro apenas para leitores privilegiados.
Falo de António Lobo Antunes e do seu último livro – reparem que não lhe chamo romance – “Sôbolos rios que vão”.

Entre 21 de Março e 4 de Abril de 2007, cerca de duas semanas, um homem que foi operado a um cancro, sob os efeitos da anestesia e de sedativos, intercala lapsos de memórias de infância, num discurso quase poético, com o momento que está a viver, o pragmatismo da doença identificado por frases curtas principalmente do pessoal médico, o ambiente que o rodeia, frases soltas largadas por visitantes de outros doentes.

Não tendo propriamente um enredo, o livro tem um pulsar sempre presente e crescente. Com menos fragmentação do que em obras anteriores Lobo Antunes cativa o leitor como um mestre de sensibilidade. “Sôbolos rios que vão”, título retirado de um verso de Camões é, ele também, um grande poema, com “grande” a utilizar todos os sentidos da palavra.

Este não é um livro para qualquer um. É um livro apenas para leitores privilegiados. E eu sou um dos que tiveram o privilégio de o ler.


por Joaquim Gonçalves
31.10.2010

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