«Tenho a certeza de que serei lido para sempre»


Expresso - Revista Única
Entrevista de Ana Soromenho e José Mário Silva
16 de Outubro de 2010



«Se eu tirasse as máscaras, começavam a aparecer estas histórias»


Esquivo. Arrogante. Gentil. Inseguro. Terno. Brutal. Conversa com António Lobo Antunes, o escritor que continua a dizer que não gosta de entrevistas.
António Lobo Antunes recebe-nos em casa: estantes cheias até ao teto. Quadros de Júlio Pomar, fotografias da família e amigos. Foi aqui que escreveu o livro publicado por estes dias ("Sôbolos Rios que Vão", Dom Quixote) e o próximo, já em fase de revisão. É a primeira vez que escreve onde mora. «Ao contrário das minhas casas anteriores, esta não está sempre a mandar-me embora», explica enquanto nos conduz à sala ampla e luminosa, as árvores a agigantarem-se nas janelas. O escritor que afirma ter muita dificuldade em falar da matéria dos livros, porque «está no limite do indizível», não vive sem eles. Junto aos sofás, a estante dos preferidos: Tolstói, Cervantes, Joyce, Shakespeare, Conrad.... Uma sala inteira é reservada aos exemplares das muitas traduções dos seus livros feitas pelo mundo fora. Quando conversamos com Lobo Antunes, ficamos sem conseguir perceber se ele sabe onde termina a sua ficção e começa a sua realidade.
Disse-nos que não queria dar esta entrevista... E, para nós, também se torna delicado...Delicado porquê?

Preferimos entrevistar quem tenha prazer na conversa. Tanto no seu caso como no nosso, é trabalho.
É o vosso trabalho, não o meu.

Se não fosse pelo seu trabalho, não estávamos aqui.
O meu trabalho é escrever livros, não é falar sobre eles.

Mas fala.
Não, não falo.

Acaba sempre por falar. Dá muitas entrevistas.
Vamos ver... As entrevistas são terríveis. Trata-se de um exercício de vaidade. Construímos uma pessoa a partir de uma ideia ou construímos a ideia a partir da pessoa? Muitas vezes, já se leva uma ideia da pessoa e queremos, instintivamente, que ela corresponda.

Diz que não gosta nada disto, mas colabora sempre. No fundo, aprecia este jogo.
Acho que sou ingénuo. Penso: "Desta vez, vão-me entender." Talvez porque espere um entrevistador ideal. No meu caso, a corrente passa ou não passa. Quando não passa, é impossível. Não quero dar nenhuma ideia ao leitor acerca do livro. Tem de se vender sozinho. Quando o publico, é porque estou contente com ele. O importante é que chegue ao bom leitor.

O que é um bom leitor?
É um leitor que fala para o livro.

Esse diálogo é silencioso.
Não é silencioso, está cheio de gritos.

Mas são gritos interiores, entre o leitor e o livro. Como é que o escritor recebe esse eco?
Há muitos que me escrevem. E não só leitores. O Christian Bourgois [editor francês da obra de Lobo Antunes], com quem não falava de livros, escreveu-me uma carta, antes de morrer, em que diz: "Tu és meu irmão e não há escritor no mundo que admire tanto." Nunca me tinha dito isto. Era um homem que parecia seco, mas por baixo dessa frieza aparente havia um calor humano extraordinário. Portou-se com uma grande coragem durante o cancro, sabendo que ia morrer. Eu disse à mulher, a Dominique, que é quem dirige agora a editora: "O teu marido portou-se com imensa coragem." Ela respondeu-me: "Não é coragem, é elegância."

Essa luta coincidiu no tempo com a sua própria luta contra o cancro.
Foi um pouco antes. O problema é que ele morreu e eu não. Sabe, quando estava a fazer tratamentos, pensava muito: "Hoje vou viver ou morrer?" As outras pessoas comportavam-se com uma dignidade imensa.

Fala nisso como se houvesse em si uma culpabilidade.
E havia. Sentia-me culpado.

Mas porquê?
Porque as pessoas eram melhores do que eu. Mais dignas, mais corajosas. A única coisa que eu sentia era um vazio.

Acha que não teve essa coragem?
Perguntei aos meus amigos. Dizem que sim.

Numa situação dessas, o que é ter dignidade?
Na sala de espera da radioterapia, havia revistas nas mesas que ninguém lia, televisões para as quais ninguém olhava, raparigas de 18 anos com cabeleiras postiças. E eu sentia-me rodeado de príncipes. Eles eram, eu não. Um senhor de idade vinha de uma terra qualquer do Alentejo e a ambulância trazia-o para Santa Maria. Vestia fato completo. Um fato cheio de manchas, com o colarinho abotoado, mas sem gravata. Já tinha a magreza dos estados terminais, uma cor horrível, e, quando o chamavam, avançava como se fosse um rei. Nunca vi gravata tão bonita como aquela. Essa majestade, eu não tinha.

De que modo essa proximidade com a morte o transformou?
Há uma série de coisas que deixam de ser importantes.

Quais?
Olhe, há outras que passam a ser importantes. Estar sol, estar aqui sentado, estar vivo. Agora faço revisões de seis em seis meses e para o ano consideram-me curado.

Entretanto, continua a fumar cigarros...
Claro que continuo.

Foi sorte?
Não. Foi um cirurgião extraordinário. Antes da cirurgia, explicou-me que a TAC não tinha metástases mas que não sabia o que ia encontrar. Eu estava à espera da anestesia e de repente senti que me estavam a pegar na mão. Era ele. Esteve de mão dada comigo até eu adormecer. É difícil imaginar como isto é importante.

Teve medo?
O que vem depois é uma indiferença, um vazio. O pós-operatório foi muito longo. De início, não tinha sequer força para carregar na campainha para chamar a enfermeira. Eu era uma coisa que estava ali.

Como é que se volta à vida normal?
Muito devagar. Eu estava a meio de um livro, "O Arquipélago da Insónia". Quis recomeçar, mas escrevia meia hora e ficava exausto.
Consegue-se regressar ao mesmo livro?
Estava cheio de medo. Se não escrevo durante quatro ou cinco dias, perco a mão. E ali foram meses. Não sei, um livro é tão independente de nós... Tem uma vida própria.

O livro ajudou-o a sair do vazio?Não. Aí eu já estava mais seguro de que não ia morrer. O cirurgião dizia que tinha de retomar as minhas rotinas, e eu não conseguia. Ficava sentado o dia todo a olhar para a parede.

Assustou-o a possibilidade de não voltar a escrever?
Não pensava nisso. Agora, sou outra vez incapaz de imaginar a vida sem escrever. Na altura, era-me indiferente.

O que era voltar às rotinas? Dá a ideia de ser uma pessoa extremamente metódica.
Tenho de ser, não é? Este é um ofício de paciência. Começa das dez à uma, continua das duas até às oito, e depois das nove às onze. Ao sábado, a partir das cinco, não escrevo. No domingo, recomeço.

Toda a sua vida se organiza em volta desse horário intenso?
Sim, desde que deixei de ser médico.

Essa outra profissão aparece sempre em segundo plano., mas também foi determinante.
Gostei de ser médico.

De que é que gostava?
De várias coisas. Ser imediatamente útil, ver as pessoas melhorar. Aprendi imenso com os pacientes. Foi lá que ouvi a melhor lição de teoria da literatura. Já contei isto. Um dia, uma pessoa a quem chamavam esquizofrénico disse-me; "O mundo começou a ser feito por detrás." É uma frase extraordinária. Ou aquela outra, de uma mulher com imensas dores que, ao perguntarem-lhe como se aguentava, dizia: "É tudo a poder de lágrimas e ais." A beleza desta frase! Como isto resume bem o sofrimento! E, depois, o encontro com as pessoas. Sempre vivi espantado com a riqueza das pessoas. Mas fui para Psiquiatria quase por acaso. O meu pai era um neuropatologista e ficou muito chocado com a minha escolha. Achava que a Psiquiatria é uma espécie de conto de fadas científico. Dizia que tanto faz o diagnóstico, o tratamento é sempre igual.

Também não via com bons olhos a sua opção pela literatura.
Nunca falámos sobre os meus livros.

Mas sabia a opinião que ele tinha sobre si enquanto escritor.
Não. Só soube a sua opinião depois de ele morrer.

Como soube?
Deixou-me escrito.

Deixou-lhe cartas?
Uma carta.

Podemos perguntar-lhe o que dizia?
Com 13 anos anunciei-lhe que era escritor e que queria ir para Letras. Ao contrário da minha família, que pensava que eu ia acabar na miséria, a vender pensos rápidos, eu tinha a certeza que não. Estava seguro do meu génio. Era uma coisa que não oferecia qualquer discussão. Isto com 8, 9 anos. Tinha a certeza de que ia trazer coisas novas e também que só escrevia merda. Com 18 anos, o Almeida Faria, que era da minha idade, publicou o "Rumor Branco" e depois "A Paixão", e eu pensei: "Bolas, são todos melhores do que eu." Demorei muito tempo a encontrar uma voz.

A sua voz.
Não sei se é a minha. Mas demorei muito tempo a encontrar uma maneira de dizer as coisas. Com os primeiros livros, sentia: "Ainda não é isto, ainda não é isto, ainda não é isto." Devia ter começado a publicar só a partir de "O Esplendor de Portugal": a partir daí, os livros tornam-se mais parecidos com o que para mim deve ser um romance.

Talvez não conseguisse chegar lá se não tivesse escrito os primeiros livros.
Talvez. É verdade que a partir do "Conhecimento do Inferno" começo a tentar introduzir uma maneira de dizer as coisas diferente.

Na tal carta, o seu pai falava-lhe dos livros?
Falava em geral.

O que ficou a saber que não soubesse?
Nunca mostrei a ninguém.

Surpreendeu-o?
Não. Correspondia ao que eu achava de mim mesmo.

Portanto, ele acabou por reconhecê-lo.
É muito curioso, os nossos mortos continuam a mudar dentro de nós. Continuam a dialogar e a inquirir-nos. Depois, finalmente, há uma altura em que ficamos em paz, se conseguirmos. A maioria dos filhos forma-se contra o pai. Eu formei-me de costas para ele. Mas houve uma coisa muito importante que ele me transmitiu: o pudor. Nunca o vi elogiar um filho. Lembro-me que uma vez tive um Muito Bom, e os pais dos meus amigos, quando eles tinham boas notas, davam-lhes dinheiro. O meu disse: "Só te dou dinheiro quando tiveres um Bestial."

Era muito exigente.
Era muito normativo, mas naquela época era impossível não ser. Não tinha o menor sentido de humor, não  tinha a menor imaginação, não era criativo. E acho que o sonho secreto dele era ser escritor, ou pintor, ou uma coisa assim.

Percebeu isso mais tarde?
Não, já tinha percebido antes. Quando tinha 8 anos, ele sentava-se na borda da cama a ler-nos Flaubert e outros clássicos, a ler poesia.

Se foi ele que o introduziu nesse universo, porque é que se recusava a aceitá-lo como escritor?
Não me contrariou. Quando decidi que queria fazer Letras, disse-me apenas qualquer coisa como: "Acho que era melhor tirares um curso técnico, porque disciplina-te o pensamento."

E inscreveu-o em Medicina.
Sim.

Então estava a combater a sua vocação de escritor.
Não. Fui injusto ao dizer isso. Não me contrariou. Quando era miúdo, eu escrevia às escondidas, com um livro de estudo à frente, para trocar quando alguém me via. Ainda hoje escrevo com um livro aberto à minha frente. Há uma parte de mim que acha que esta não é uma actividade séria.

Será por isso que nunca falaram sobre os seus livros?
Nunca houve conversas pessoais entre nós. É uma coisa que me agrada. Com os meus irmãos também não tenho conversas dessas. Não se fala sobre a relação com Deus, que é uma coisa muito íntima, nem de relações afetivas. E de política muito pouco. Posso imaginar o que é que os meus irmãos pensam, mas não sei em quem é que votam, nem lhes pergunto.

Falam de quê?
De que falamos? De Medicina, de... Na minha família não se fala muito.

O seus pais não diziam que era especial?
Especial não, diferente. E era apavorante.

Diferente como?
Eu não sabia. Não sabia o que estava na cabeça deles. A minha mãe conta que eu com 2 anos me deitava no chão e ficava a olhar para o teto e que ela ficava muito assustada com isso.

Acha que foi um exemplo para os seus irmãos?
Nem por isso. Eu era um cobarde. Tinha medo de tudo. Em adolescente, só dei exemplos de cobardia física. Durante as revoltas estudantis, não ia por medo das cargas da polícia. Depois, houve África. E aí fiz coisas parvas. Sentava-me no guarda-lamas do rebenta-minas. Queria ganhar o meu respeito. Percebi que não se pode ter medo de ter medo. Um dos meus orgulhos é o amor que os meus soldados me têm.

Mas recentemente envolveu-se numa polémica com os militares...
Esse assunto está enterrado. Nunca me preocupei com isso. É uma palermice. O que a mim me mete medo é escrever. Cada livro é o primeiro livro. Uma pessoa está ali diante daquilo, e agora?

Sente sempre essa angústia ao começar um novo livro?
Estou tão ocupado a resolver os problemas técnicos que o texto me coloca que isso não acontece. Ao princípio fazia planos, esquemas, agora já não faço. O livro vai sempre para outros lados. Este que vai sair agora, por exemplo, não o imaginava assim.

O livro foge-lhe?
Não sei se ele foge. É como os filhos. Os filhos não são nossos, mas também não são de mais ninguém, não é? E depois o epíteto de romance... Aquilo não são romances. Eu quero é chegar ao mais profundo da verdade das coisas. Como nas peças de Tchekov, onde nada se passa e as personagens dizem frases como "tenho frio", "amanhã vai chover", "a cerejeira não sei quê"... E como ele consegue dar todas as gamas da alegria e do sofrimento. É espantoso. E, se formos ver os manuscritos, não há uma linha que não esteja rasurada. O problema é diminuir a distância entre a intensidade com que sinto as coisas e o que fica no papel.

Há momentos em que sente que escreveu exatamente aquilo que queria escrever?
São aqueles em que sentimos "é isto". Os bons momentos parece que nos são oferecidos, que não nos pertencem. Nunca releio os meus livros. É um paradoxo, porque escrevemos os livros que gostávamos de ler e depois não os lemos. E, se leio, começo logo com vontade de corrigir aquela porcaria toda.

Leu os trabalhos académicos, e já são muitos, que se têm feito sobre a sua obra?
Começo e depois não leio mais. Tenho medo que aquilo mate qualquer coisa. Mesmo quando fiz análise, nunca falei do que escrevia.

Foi importante fazer psicanálise? Ensinou-lhe alguma coisa sobre si?
Não sei. Foi há muitos anos. Não sei se foi aquilo, se foi o tempo. Há um episódio na vida de Alexandre Magno em que ele tinha de tomar uma decisão acerca de uma batalha e, contra seu hábito, estava muito indeciso. Então falaram-lhe de uma mulher que adivinhava o futuro. e ele mandou chamá-la. Ela disse: "Isto é muito fácil. Acendes uma grande fogueira, e as palavras aparecem no fumo. Só não podes pensar no olho esquerdo de um crocodilo." Ele mandou embora a mulher e não acendeu nenhum fogo. É evidente que a proibição iria gerar a transgressão. Escrever é isto: não pensar no olho esquerdo do crocodilo.

Mas com o novo romance está satisfeito.
Consegui dizer aquilo que queria dizer. Mas foi tão cortado que acabou por ficar pequeno. Quase um quinto da versão original.

Duzentas páginas é um bom tamanho.
É pequenino. Como leitor, gosto de livros grandes. Começo a gostar de um livro precisamente ao fim de duzentas páginas.

Este livro, que narra a história de alguém internado num hospital oncológico, volta a ser bastante autobiográfico.
Não há nada de autobiográfico. Devo ter ido à nascente do Mondego uma vez, e aquilo que vivi não foi assim.

Mas não foi esta a forma que encontrou  de trabalhar literariamente a experiência da doença e da proximidade da morte?
Foi completamente diferente. Eu estava vazio e aquela voz que fala está cheia de coisas lá dentro.

Parece que a aldeia da infância, de repente, entra pelo hospital dentro...
Vila!

Sim, desculpe, a vila... É inspirada em Nelas, não?
Claro. Há um homem, que é o Virgílio, que encantava a minha infância por andar numa carroça com um burro. Não me deixava pegar nas rédeas.

Afinal, é autobiográfico.
Essa parte é verdade, chamava-se mesmo Virgílio. A senhora que toca harpa também existia, fazia-me muita confusão.

E há um jogo com a identidade. O protagonista chama-se António, tratam-no por Sr. Antunes...
Faço isso em todos os livros, já reparou? Fiquei mesmo contente com este. Também tinha ficado com o anterior ["Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar?"], mas depois percebi que tinha usado o pedófilo e que me tinha servido da muleta técnica para uma série de coisas, está a ver? E só me apercebi quando estava a corrigir. Neste livro, quis fazer sem corda nem picareta. Acho, e cada vez mais, que só devemos começar a escrever quando temos a certeza de não sermos capazes de o fazer. Como no livro dos "crocodilos": o que é que um homem sabe das mulheres? Procurar desafios impossíveis.

Há 12 anos que se fala do suposto trauma que terá sido para si o Prémio Nobel atribuído a José Saramago...
Trauma, eu?! A coisa mais curiosa que me aconteceu com o Nobel foi há uns 15 anos. Estava na Holanda, com o editor, num hotel, e havia a certeza absoluta de que eu ia ganhar o Prémio Nobel. Descemos, estavam as televisões todas. Anunciaram quem tinha ganho, já não me lembro quem foi, e desapareceu tudo num instante. Uma coisa espantosa.

Secretamente, não espera que amanhã alguém lhe telefone de Estocolmo? [esta entrevista foi feita na véspera do anúncio do Nobel, atribuído a Mario Vargas Llosa]
É impossível este ano. Nem pensar. E, depois, sabe quem é que ganhou há três anos?

Doris Lessing.
Foi mesmo?

Foi.
Nos últimos anos têm premiado escritores de que eu não gosto. E muitos daqueles de que mais gosto não ganharam. Aliás, seria melhor para mim ficar do lado dos que não ganharam, como o Tolstói ou o Borges. Não sou admirador do Borges, mas ele é bom. Tem tudo para ser mau e é bom. Já o García Márquez, de quem sou amigo, se formos ler agora os "Cem Anos de Solidão", aquilo envelheceu tanto! "O Amor nos Tempos de Cólera" não. É um livro magnífico. Mas acho que o Vargas Llosa tem muito mais talento.

E esse merecia sem dúvida ganhar o Prémio Nobel.
É um grande escritor até ao "Pantaleão e as Visitadoras", mas depois... Estamos muito longe do século XIX, em que havia 30 génios. Agora, se houver quatro bons escritores no mundo já é bom.

Quem são eles?
Cormac McCarthy, por exemplo. Do Vargas Llosa de "A Casa Verde", "A Cidade e os Cães", "Conversa na Catedral", que me parece uma obra-prima. Depois há aqueles livros eróticos, de que eu não gosto, tenta recuperar a mão com "A Festa do Chibo", mas já não consegue. O problema dele é que aceita todos os convites, mas é um homem extraordinário: muito bonito, muito culto, muito agradável. Já aí tem dois. Também gostava muito do William Gaddis.

Esse já não vai a tempo.
Não. Mas também duvido que lho dessem.

Preocupa-o a forma como vai ser lembrado daqui a 20 ou 50 anos?
Daqui a 20, ainda posso cá estar. Daqui a 50, não. Há poucas obras que sobrevivem aos seus autores. Olhe os nossos. Quem é que lê hoje o Zé [Cardoso Pires], de quem eu gosto tanto? Quem é que lê o Carlos de Oliveira? Ou o Namora, o Vergílio Ferreira, a Agustina, O Saramago, essa geração toda, quem é que os lê hoje?

Essa questão preocupa-o muito?
Preocupa-me pelo Zé. E quantos escritores franceses ficam do século XX? Dois: Céline e Proust.

Tem a esperança de ser uns dos que ficam?
Para ser honesto, acho que vou ficar.

Vai ou gostaria de vir a ficar?
Vou ficar. Estive a ler o texto de um crítico do "El País" que diz que daqui a cinco mil anos vou ser lido com paixão. Acho que ele tem razão. Ao mesmo tempo, que diferença é que isso faz? Que diferença faz ao Camões que nós gostemos dele? E ao Horácio? "Estou a construir um monumento mais duradouro do que o bronze", dizia. E estava certo.

Como pode ter essa certeza de que será lido para sempre?
Tenho, e a Ana também.

Eu não...
Então é pateta. Vou ficar, mas não me serve de nada. É como decidir que queremos ser cremados depois de morrer. Quando decidimos, estamos a ser eternos, mas continuamos a pensar enquanto vivos.

Os escritores constroem em vida a biografia que querem fixar para a posteridade.
Sim. Vão começando a construir o mito.

Já há alguns anos que o António vem fazendo isso, não é?
Eu? Acha que sim? Não tenho essa noção. Está a falar de fazer com que a minha obra perdure?

Não só a obra. A personagem também.
E o que digo tem algum interesse?

Posso ser sincera? Não se ofende?
Não me ofendo com a verdade.

Repete-se muito. Em todas as entrevistas há coisas que diz exatamente da mesma maneira. E é aí que se nota a construção da sua personagem.
Claro que me repito. Precisamente por ser uma cassete que já conheço bem.

Torna-se mais fácil dar entrevistas?
Não. Mas assim continuo a ser um desconhecido.

Então como nos pode dizer que procura a entrevista perfeita se nunca se entrega?
É impossível falar de livros. Pasmo com os académicos... Acha que repito sempre o mesmo?

Repete fórmulas.
Não fiquei nada aborrecido... Quanto às fórmulas, naturalmente que as tenho. Por baixo das máscaras, está a pessoa. Lembra-se do que o Nerval escrevia nos seus retratos? "Sou o outro." "Je suis l'autre." Assim, as pessoas deixam-me em paz. Mesmo com amigos que também escreviam... com o Zé nunca falei de livros, com o Eugénio de Andrade, com o Amoz Oz. Nunca falámos de livros [o escritor interrompe a conversa e diz ao fotógrafo: "Isso aí na parede são frases que escrevi. Gosto muito da do Oscar Wilde: "Homero ou outro grego com o mesmo nome"].

Também tem ali uma frase sua: "Se estivesse no meu lugar, o que faria?" Está no "Memória de Elefante", o seu primeiro livro. Quando a escreveu ainda não era o Lobo Antunes.
Descobri-a e já nem me lembrava de que a tinha escrito.

E o que faria se estivesse no seu lugar?
Referia-me a decisões que não tomamos por cobardia. Aqui há tempos a minha filha Joana telefonou-me a dizer: "Pai, acabei o namoro à homem!" Os homens nunca dizem: "Já não gosto." Dizem: "O problema não está em ti, está em mim. Preciso de pensar, preciso de espaço..." As mulheres são muito mais directas: "Deixei de gostar de ti." E pronto. Os homens nunca o dizem porque querem que a mulher fique de reserva.

Aguenta quando uma mulher lhe diz: "Deixei de gostar de ti"?
Que remédio...

Já ouviu essa frase?
Não.

E com tanto romance que teve...
Sou um querido! E quem disse que eu tive muitos romances? Isso faz parte da lenda!

Lá está, a lenda. Alimentada por si...
Não. Nunca falo de mulheres. Se leu as entrevistas, reparou nisso.

Numa longa conversa com a jornalista espanhola Maria Luísa Blanco, falou muito sobre a mãe das suas filhas, Maria José.
Se não fosse ela, nunca teria escrito. Tinha 18 anos e achava que eu fazia coisas bestiais. Eu achava que era uma merda. Vivíamos num quarto alugado, não havia dinheiro, e ela cozinhava no peitoril. Tínhamos uma mesa pequenina e, depois do jantar, ela levantava a mesa para eu escrever.

Ela acreditava.
Acreditava. E era uma miúda.

E separaram-se antes de publicar "Memória de Elefante".
Nunca mais me esqueço de ela dizer: "Não admito que outra mulher vá viver contigo e ter aquilo por que lutei tanto."

Isso pesa-lhe?
Não.

Percebo que o seu pudor não lhe permita falar disto.
São coisas que não se partilham... Muitas vezes visitei o cemitério, deixei lá cartas e o único soneto que escrevi. A senhora que toma conta das campas dizia-me: "Está aqui ao lado da menina o lugarzinho para si."

As suas filhas publicaram as cartas que trocaram durante a guerra.
Não li. Foram traduzidas em tantos sítios, um horror. A última coisa que a Maria José me disse antes de morrer foi: "Que horas são?" É muito frequente nas pessoas que estão a morrer: perguntar as horas. Respondi: "Um quarto para as seis." E ela disse: "Que hora mais improvável!" É tudo muito íntimo. Não gosto de falar nestas coisas. Se eu tirasse as máscaras, começavam a aparecer estas histórias. Não tem interesse nenhum. Só me interessa porque foi a minha vida. Tudo me comove... Uma pessoa anda com a ternura assim [faz um gesto de segurar no colo] e não sabe onde a pôr.

Essa é a matéria dos livros?
Por baixo dos livros estão estas coisas. Desde que nasci até agora: a meningite que me pôs em coma não sei quanto tempo, a tuberculose aos 3 anos, coisas boas, coisas más... a morte de pessoas de que eu gostava tanto, a do meu avô oficial de cavalaria - ainda hoje, às escondidas, dou beijinhos na fotografia dele - e que detestava que eu escrevesse, achava que era coisa de maricas... [pausa] Quando o meu pai morreu, os meus irmãos vieram beijar-me a mão. É estranho, não é?

Por ser o mais velho? Estava a receber o legado?
E agora sou eu que me sento à cabeceira. Nos jantares das quintas-feiras, primeiro servem a minha mãe, a seguir a mim. E só depois as minhas cunhadas.

O que sente por ocupar esse lugar?
O mundo fica completamente diferente visto daquela cadeira.

Uma questão muito complicada para muitos escritores é o envelhecer. Não só a aproximação da morte mas também o facto de o corpo deixar de funcionar... Já não conseguir fazer o que fazia.
A única preocupação é isto ter secado. Quando acabo o livro, não tenho outro na cabeça. Mas, quando me vejo no espelho da barba, estou com 20 anos. A minha mãe, que tem um cancro na pele, sonha com eternidades de um ano.

Numa das suas crónicas escreveu: "Os sexagenários vêm morrer na areia numa desilusão de cachalotes sem esperança."
Quando penso na minha idade, fico espantado. Passou tão depressa. Há uns tempos fui ao hospital, estavam lá umas enfermeiras reformadas, uma olhou para mim e disse: "Ah! Era lindo! Onde estão os seus olhos? Era lindo!" Foi horrível! [risos] Passamos de homem bonito para senhor interessante.

Disse várias vezes que só escreveria mais um ou dois livros para arredondar a obra e depois terminava.
Se eu pedir só um, talvez a morte se esqueça de mim durante um bocado. Não me imagino sem isto.

Nesse caso, porque é que anunciou publicamente que ia deixar de escrever?
Às vezes passa-me pela cabeça, mas depois ponho-me a pensar: "E vou fazer o quê?"

Portanto, vai escrever até ao fim.
Não sei fazer mais nada [o escritor interrompe novamente: "O António Pedro está a gostar das frases?", pergunta].

Por falar nisso, não chegou a responder à pergunta que há pouco lhe fizemos.
Aquela frase é ótima. É de um autor inglês, o Thesiger, que esteve na guerra de 14-18. E, mais tarde, quando lhe perguntaram sobre a experiência de combatente, respondeu: "Que barulho querido. E que gentinha."

É um colecionador de frases. Vale-se da célebre memória de elefante.
Para certas coisas. Toda a invenção é memória. O meu pai provava que as pessoas que tiveram um AVC e ficavam privadas da memória também ficavam privadas da imaginação. Quem nos arranja os materiais é a memória. As tais coisas de que a gente não fala e aparecem nos livros, de maneiras desviadas.

"O que faria se estivesse no meu lugar?" Esta frase atravessa a sua vida. E não nos respondeu.
Pois... Pus isso aí para me lembrar às vezes... [pausa longa] Para me lembrar às vezes.


O novo romance é "uma celebração da vida"

Não é a primeira vez que António Lobo Antunes recorre a versos alheios para dar título às suas obras. Aconteceu com "Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura" (2000), tradução livre de um verso de Dylan Thomas. Aconteceu com o romance "Que Farei Quando Tudo Arde?" (2001), em que recupera o verso final de um soneto de Sá de Miranda. E acontece de novo na obra mais recente, "Sôbolos Rios que Vão", uma narrativa de 199 páginas [...] que evoca as mais famosas redondilhas de Camões. "Na editora, criticaram-me imenso por causa do título", explica Lobo Antunes. "Aquele 'sôbolos' é muito arcaico, acharam-no pouco comercial. Mas o poema do Camões é espantoso." Lendo o romance, todo ele atravessado pela imagem do Mondego - quase invisível na nascente mas que vai engrossando o caudal (à semelhança da vida do protagonista, ela própria um rio em que as histórias dos familiares e conhecidos funcionam como afluentes) - , poderia pensar-se que Lobo Antunes partiu dos versos de Camões, que falam de Babilónia, Sião e da "mágoa" de quem recorda, em tempos de desgraça, o "bem passado". Mas não foi assim. "O livro já estava escrito, só não tinha título. Os rios que há lá dentro é que me fizeram depois pensar no Camões. À partida, não tinha nada que ver com o poema." Então como se explica que algumas das redondilhas pareçam autênticas sinopses do romance? "Pois é, isso acontece mesmo. Não sei. Foi um milagre do caraças." Embora o autor negue que o livro seja autobiográfico, salta à vista que "Sôbolos Rios que Vão" é talvez dos romances que mais se aproximam da sua própria experiência, pelo menos desde a trilogia inicial ("Memória de Elefante", "Os Cus de Judas", "Conhecimento do Inferno"). Só que, em vez da guerra em Angola, ou do trabalho como psiquiatra, o que nesta obra se retrata é a luta contra uma doença mortal, um cancro que devora o protagonista por dentro, levantando-lhe do corpo o "pássaro do seu medo" - situação similar à que o escritor viveu em 2007. Aliás, as datas que balizam o romance, que evolui, dia a dia, de 21 de março a 4 de abril, coincidem com as datas em que António Lobo Antunes esteve internado para remover cirurgicamente um cancro do intestino. Embora se chame António e o seu apelido seja Antunes, o protagonista, que delira o tempo todo, deitado numa cama de hospital, cruzando vozes e memórias de infância, não é o autor do romance. Mas duvidamos que o autor do romance conseguisse escrever assim, com esta tremenda exatidão, se não tivesse estado naquele limbo perto da morte. Um limbo concreto, de onde voltou para nos oferecer, nas suas palavras, "uma celebração da vida."   [J.M.S]

* a imagem das frases que ALA escreveu numa das paredes de casa é uma parte digitalizada directamente da foto que saiu na Revista, da autoria de António Pedro Ferreira, e que aparece aqui, a meio da entrevista, apenas para ilustrar aos leitores sobre essa passagem em que se fala dessas citações que o escritor escolheu.

por cortesia de Ana Soromenho
Expresso
16.10.2010

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