Alfredo Monte: Miasmas familiares em Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?

“começo a pensar se é que se pode chamar-se pensar a um ressentimento antigo…” (António Lobo Antunes, Eu hei-de amar uma pedra)

Além de ser uma obra-prima, Eu hei-de amar uma pedra (o trecho acima pode ser encontrado na pág. 316 da edição brasileira, pela Alfaguara) tem um título que é emblemático da visão de mundo que sustenta a obra de Lobo Antunes. Só não gosto, nesse romance, de um detalhe, que não chega a atrapalhar, mas que me parece “sobrar” na tessitura geral. Na pág. 127, lemos: “ou sou eu que imagino ou o António Lobo Antunes julgando que devo imaginar a fim de que o romance melhore”.

Creio que ele usa esse recurso a uma “janela” metalinguística de forma mais feliz e consequente no seu mais recente romance, QUE CAVALOS SÃO AQUELES QUE FAZEM SOMBRA NO MAR? (ninguém pode ser pego de supetão para dizer esse título, vai se embaralhar todo). Os narradores debatem com “o que faz este livro”, com a chamada instância autoral com o próprio Lobo Antunes, cuja participação também é problemática, pois, além de ser interpelado pelas suas criaturas, afigura-se-nos que ele está numa corrida contra o tempo. Ele já afirmou que após os 70 anos (e, nascido em 1942, portanto está quase lá) ninguém produz nada que preste. Então pode-se ler o seguinte nas págs. 108-109 do novo livro:

“o que pensará minha mãe nesta altura, aposto que não há há espaço nela para pensar (…) e no entanto suponho que gorjeios, risinhos, uma palavra feita pedido de esmola ao telefone
Por quê?
porque o mundo não se incomoda com a gente senhora (…)
Por quê?
numa parte da minha mãe que nem estou certa que exista, o que sobeja quando não existimos, em que pensarei eu, este livro é seu testamento António Lobo Antunes, não embelezes, não inventes, o teu último livro, o que amarele por aí quando não existires…”

Como se sabe, nesta última década, talvez premido pelo “prazo” que decretou com suas declarações sempre um tanto dogmáticas, ele se lançou a uma tarefa ciclópica, quase assustadora (parece até que ele é um pactário, um Adrian Leverkühn), de lançar um após o outro uma série de livros “totais”, de uma amplidão que não deixa margem a dúvidas sobre quem é o maior nome da ficção em língua portuguesa dos nossos dias. Assim tivemos depois de Eu hei-de amar uma pedra (2004): Ontem não te vi em Babilónia (2006), Meu nome é Legião (2007) e O arquipélago da insónia (2008).

E agora mais um tour-de-force. A Alfaguara tem optado por manter a grafia de Portugal nas suas edições de Lobo Antunes, como outras editoras que estão fazendo o mesmo com seus lançamentos de autores lusitanos, entretanto não será essa a maior dificuldade do leitor que não está acostumado à sua linguagem peculiar, seus parágrafos que começam com letra minúscula (como se acompanhássemos um fluxo que não começa nem acaba) e se interrompem, os inúmeros parênteses que se abrem, as frases-refrões que surgem e ressurgem na boca dos mais diversos narradores, os fatos que parecem muito concretos e realistas e depois se tornam irreais e fantasmáticos… Na minha opinião, a obra dele é tanto um projeto modernista, no sentido de buscar a totalidade (como fizeram Joyce, Proust, Mann, Faulkner, Guimarães Rosa, Hermann Broch), quanto um projeto pós-modernista, no sentido de sombrear essa totalidade com seus escombros (o projeto modernista de Musil, que ficou inacabado, gigantesco fragmento, os autores pós-Beckett, que não acreditam mais em enredo, em personagens, no próprio real…

Ainda assim, Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?, por incrível que pareça, é mais fácil de ler que os anteriores (em O arquipélago da insónia, o efeito emaranhado era acentuado pela perspectiva de um autista), com uma tessitura de fatos menos intrincada: acompanhamos os últimos momentos de vida da matriarca da decadente família Marques, e os depoimentos dos parentes mais próximos (e uma empregada fiel, ainda que desprezada, Mercília), especialmente dos filhos Francisco, Beatriz, Ana e João (há uma irmã que morreu, Rita, e um outro sobre o qual ninguém fala): Francisco está roubando dos outros herdeiros os restos que conseguiu salvar da bancarrota; Beatriz é que nos dá a imagem de potência e plenitude que justifica o título (e que é retomada e/ou posta em dúvida pelos demais); Ana é viciada; e João é a vergonha da família, devido ao homossexualismo (na verdade, ele seria mais um pedófilo, caçando menininhos num parque) e ao fato de ter AIDS.

Por mais histórias do gênero que já tenham sido escritas, poucas terão a visceralidade e radicalidade dessa investigação dos miasmas familiares que compõem nossa individualidade, essa “estranha idéia” que “viaja pela nossa carne”, como Drummond (autor muito importante para Lobo Antunes) tão bem colocou.

A leitura às vezes é exasperante, sobretudo porque, assim como Faulkner, nos vemos aprisionados numa visão de mundo em que o tempo como sucessão é anulado: o passado e o presente estão ali juntos, num círculo vicioso de impotência e paralisia. Não sou eu que o digo, é o próprio autor, veja-se outro trecho de Eu hei-de amar uma pedra, talvez sua obra maior: “pensando em como estas coisas se pegam a um homem, teimam, ficam tal como o passado continua a acontecer em simultâneo com o presente”. Mas mesmo quem recusar essa visão fatalística não poderá negar: Lobo Antunes é um narrador incomparável.


Alfredo Monte
26.01.2010

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