José Alexandre Ramos: Memória de Elefante "a primeira angústia"


A primeira vez que li Memória de Elefante, ainda desconhecendo factos da vida do seu autor, estava longe de perceber que este livro era uma biografia. Revisitado muitos anos depois, e com o que fui aprendendo sobre António Lobo Antunes, sinto-me à vontade para apontar sem qualquer sombra de dúvida este livro como um testemunho autobiográfico de um autor que embora não se estreava na arte de escrever, era estreante entre os autores portugueses publicados no final da década de 70. Os conhecedores da história desta estreia já sabem que o autor foi de férias e quando regressou ficou surpreso pois havia muita agitação à volta do livro, estava a ser um sucesso de vendas.

Não é difícil entender esse sucesso se o enquadrarmos na época (1979). O livro surgiu contra muitos cânones, empregando um discurso pouco usual para o romance instituído, embora já tivessem havido excepções à regra uma década antes com Nuno Bragança ou José Cardoso Pires. E como o próprio Lobo Antunes já disse em entrevistas, todos esperavam as grandes obras literárias que antes não se escreviam por causa da censura, e afinal nada de novo surgira após a instauração da democracia. É natural que, numa época ainda muito confusa de um país acabado de se livrar dos grilhões de uma ditadura de meio século, o barroco metafórico de Memória de Elefante, com bastantes críticas sociais feitas com ironia e caricatura, incluindo o uso de vocabulário tido como obsceno, tivesse despertado a curiosidade de muitos leitores.

Como já referi, trata-se de um livro bastante biográfico - um facto por todos reconhecido, incluindo o próprio autor - onde se torna difícil separar a ficção do realmente vivido (ou confessado em entrevistas pelo escritor). Conta um dia na vida de um psiquiatra desde que começa uma jornada de trabalho até à alvorada do dia seguinte, um homem angustiado por uma variada ordem de factores: a mal explicada separação da sua mulher e duas filhas, a frustração profissional no exercício da psiquiatria no mesmo hospital onde trabalhara o seu pai, a solidão e o desespero, o jogo como fuga à realidade, os fantasmas do passado (guerra e infância), a procura de uma voz para a sua escrita. Ou, em poucas palavras, a terrível procura de si mesmo. Nessa circunstância, o livro vai criando uma tensão à volta das indagações interiores do psiquiatra que se esgota nos dois capítulos finais.

Não é na história que conta que está o valor do livro (facto que só será mais evidente uma década depois), apesar do notório interesse do escritor que era então Lobo Antunes de retratar com uma história condensada em um só dia toda a sua experiência. Está antes nas sementes do seu engenho que se tornará cada vez mais claro depois da catarse feita com este livro e mais dois (Os Cus de Judas e Conhecimento do Inferno):Memória de Elefante usa o discurso na terceira pessoa, mas há fugas para o relato na primeira pessoa, que será a marca do estilo do autor. São essas ainda tímidas fugas para o discurso do eu que ajudam a criar a tensão no livro, em que sentimos que o narrador se mistura com a personagem narrada, ocupando-lhe o lugar, para compreendermos que afinal não é história de um dia da vida de um psiquiatra que se pretende falar, mas o que o próprio tem a dizer de si mesmo, acentuando a falta que lhe faz a presença da mulher de quem se separou, das filhas que só vê aos fins-de-semana, a sua indiferença para com os valores padrão da sociedade e dos colegas do hospital, a sua indisponibilidade psicológica para atender os doentes, a ironia com que observa o comportamento dos outros, e a busca dos afectos ainda que termine o dia numa sala de jogo onde se deixa assediar por uma mulher com o dobro da sua idade, com as mesmas carências e com quem acaba por passar a noite.

Referi ao início o barroco metafórico de que é composto o livro. Existem tantas referências culturais e artísticas quantas as abordagens ao pitoresco quotidiano, recorrendo a um verdadeiro rendilhado metafórico que tanto pode impressionar o leitor menos experiente como enfastiar quem já conheça o melhor da obra de António Lobo Antunes. Na realidade, voltar a ler Memória de Elefante depois de ler as obras mais recentes, é como regredir, onde verificamos a veracidade das declarações do próprio escritor: que é preciso limpar bem o livro de toda a ganga, de toda a sujidade. Ora, não entendendo porém este rendilhado metafórico como lhe chamo como algo negativo do livro (pois sem isso o livro nem sequer poderia existir), já não posso qualificá-lo como uma das melhores produções deste escritor, por haver recurso, direi escusado, a tanta comparação e variada metáfora. Enquadrado no contexto da sua obra, percebe-se que é um dos primeiros livros do escritor António Lobo Antunes muito verde onde se encontram, ligeiramente escondidas, as garantias que o autor amadurecerá.

É a primeira das angústias, falando num todo: a catarse do escritor, os primeiros passos para encontrar a mão e a voz que lhe ditará o estilo sui generis que toda a vida vai obcecadamente procurar, a intenção de contar não histórias mas o interior psicológico e afectivo das pessoas, buscando as palavras para o indizível (segundo a sua noção de que os sentimentos são anteriores às palavras), apanhar a vida toda entre as capas de um livro. Memória de Elefante é, de facto, o início disso tudo.
 

por José Alexandre Ramos
21.11.2009

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