Helena Vasconcelos: sobre Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?


Estocada final

Seria irónica (in)justiça poética que o ruído criado em torno da personalidade do autor distraia o leitor do ritmo ardente das palavras e da tragédia que estas convocam.

Uma terra quente de toiros e mantilhas, pó e moscas, perdizes e abelhas, com cavalos entre roseiras e azinheiras, um espaço aberto e solar, propício a desmandos e paixões, mas no qual se encravam casas sombrias de longos corredores, portas fechadas e salas a abarrotar de móveis e objectos que se impõem na escuridão, lugares onde se encerram pessoas, as quais, por sua vez, vivem enclausuradas em si próprias, vítimas voluntárias ou involuntárias da velhice, das febres, da demência, da doença, da mentira, de vícios, de traições e de segredos. Nesta cosmogonia caótica, as mulheres, os filhos(as), a criadagem, os animais, todos os mundos - o animal, o vegetal e o mineral - pertencem ao pai e senhor, um facto perfeitamente entendido pelos empregados que "não se enganavam nos garraios, recitavam de cor as famílias, as descendências, os laços... (pág.16). Aqui, neste "Que Cavalos são Aqueles que Fazem Sombra no Mar ?", como no resto da obra de Lobo Antunes, cada um ocupa o seu lugar e tem direito a um quinhão do território geográfico, moral e afectivo onde se desenrolam as comédias e os dramas que o autor redesenha indefinidamente numa espiral vertiginosa cada vez mais intricada. Mas desengane-se o leitor que procura apenas "mais um Lobo Antunes", uma vez que este romance, passado entre Lisboa e o Ribatejo, embora retome as histórias familiares e os lugares habituais do escritor, tem, contudo, a particularidade de se centrar num único tema, que é a Morte, criteriosa, insistente e cruel que se atarda na sua aproximação, nos seus sinais, na sua chegada e nas suas devastadoras consequências, e domina imperiosamente as personagens que se debatem em vão contra as longas doenças, a penosa velhice, a catastrófica perda de faculdades e o esvair das forças. Não é por acaso que a narrativa é marcada por capítulos que remetem para os momentos da tourada - "antes da corrida", "os tércios de capote, de varas e de bandarilhas", "a faena", "a sorte suprema" e "depois da corrida" - com a sua estocada final, violenta e misericordiosa. O terror do toiro antes da lide, esse medo animal e antiquíssimo, surge como leitmotiv. Tal como os estados crepusculares que antecedem o fim - da vida, do dia, do amor -, enfatizados por imagens recorrentes como "a tristeza da casa às três da tarde", "a sombra que os cavalos fazem no mar", a escuridão dos arbustos no Parque Eduardo VII, o porco pestes a ser rasgado de cima abaixo, o cão a ser atropelado e um rol de cenas em que a violência, a humilhação e o exercício do poder sobre os mais fracos (dos homens sobre as mulheres, das mulheres sobre os homens, das mulheres sobre as mulheres, dos homens sobre os homens, das mães e pais sobre os filhos, dos filhos sobre os pais e irmãos, dos seres humanos sobre os animais) completam ciclos de força, fecundidade e morte, simbolizados pelo sentido ritual da tourada.

É este o universo de uma família, feita de pedaços desconexos, que se entrega ao amor e ao ódio em igual proporção: o pai, um marialva amante de mulheres, jogo e corridas que "desarruma o passado"; a mãe, terrível Héstia, fria, sem amor, sem medo e sem remorso; os filhos, Beatriz, abandonada por dois maridos, que toma conta da mãe, Francisco, o mal amado e desprezado, de índole gananciosa e violenta que se sente imbuído de um espírito justiceiro em relação aos irmãos, os quais, segundo ele, delapidaram os bens paternos, Ana que gasta o dinheiro em drogas e João que prefere despendê-lo em rapazinhos. E há Marcília, a figura da eterna criada, sem irmãos nem (aparentemente) família que priva estreitamente com todos e é dona de todos os segredos, como uma pitonisa tão cruel quanto piedosa, tão humilde quanto altiva, tão serva quanto senhora. Aqui, como na vida, o mundo é feito de desordem e de abalos, e todas estas vozes, que falam incessantemente com uma intensidade maníaca, parecem acossadas por uma tal urgência de contar que é difícil não as "colar" ao próprio autor. Tal como no conto tradicional em que uma menina calça os proibidos sapatos vermelhos e é impelida a dançar até à morte, também Lobo Antunes parece sofrer dessa compulsão, desse desejo extenuante - no seu caso, o objecto mágico é a caneta - que o obriga a escrever palavras atrás de palavras, qual oráculo em tempo de catástrofe.
 
Funcionando como um todo auto-significante, este romance pode ser abordado da mesma forma como se "lê" um tríptico de Bosh ou uma cena de Brueghel, uma vez que Lobo Antunes constrói uma teia intrincada e cerrada feita de pensamentos, palavras e olhares (perspectivas) de um grupo de pessoas situadas num espaço que se alarga e contrai, num movimento entre o passado e o presente, entre o imaginado e o real. A construção da narrativa deve muito a Virgínia Woolf em "As Ondas", com as diversas vozes solitárias e desesperadas a funcionarem em polifonia, à medida que revelam factos e exploram os conceitos da individualidade, do "eu" e da comunidade, formando, no entanto, a "gestalt" de uma consciência colectiva escondida e silenciosa.
 
É ainda em Woolf, e em especial no conto "Uma Casa Assombrada", que é possível detectar os antepassados destas personagens fantasmagóricas, que passam de quarto em quarto empurradas pelo vento, as mãos vazias, perante espelhos que não lhes devolvem qualquer imagem. Lobo Antunes vai ainda buscar a Tchekov a obsessão pelos detalhes e pela descrição de objectos - os lustres, os boiões de compota, os números da roleta, o verniz das unhas, etc., etc., - bem como a tendência para alternar acontecimentos triviais com grandes temas - em mudanças bruscas de ritmo e de humor - no intuito de criar a sua própria e muito particular "comédia humana".
 
A convivência de Lobo Antunes com a morte confere-lhe uma autoridade hierática que ele exerce construindo um "panteão" feito de palavras impregnadas por um sopro divino e com um tom profético a que não deve ser alheia uma leitura atenta dos livros do Antigo Testamento, em especial o Eclesiastes. O facto da edição ser ne varietur, por ordem expressa do escritor, confere-lhe esse carácter de "texto sagrado", não passível de ser tocado ou alterado. Seria uma irónica (in)justiça poética que o ruído criado em torno da personalidade de Lobo Antunes - para o qual o autor contribui com bastante afã - abafe o verdadeiro sentido deste livro e distraia o leitor do magnífico ritmo ardente das palavras e da tragédia que estas convocam. É verdade que Lobo Antunes parece estar preso no seu labirinto sem ver a utilidade do fio de Ariane, embrenhando-se cada vez mais numa busca que desdenha a hipótese de uma saída. Aqui, o desabafo final "Finis Laus Deo" parece querer traduzir um grande alívio, o descarregar de um pesado fardo. Resta saber para onde se dirigirá Lobo Antunes "quando tudo arde" depois de destruir todas as pontes atrás de si.


por Helena Vasconcelos
suplemento Ípsilon
(Público)
21.10.2009

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