«Tenho sempre medo de secar a fonte»


Diário de Notícias - entrevista de João Céu e Silva
16 Fevereiro 2009


Quando acaba um livro esquece-se dele.
Exactamente.

Deste ainda se lembra bem. Está fresco!
Ainda, foi há tão poucos dias. Se calhar, é por isso que não tenho nada na cabeça. Neste momento estou vazio como uma mula parida, uma égua, ou seja o que for. Normalmente, quando estou a acabar um livro aparecem-me umas palpitações de outro livro, que na maior parte das vezes estão erradas e depois desaparecem. Desta vez, apareceu-me uma coisa, mas não sei se é isso, tenho que me esvaziar...

O que está a fazer enquanto não escreve?
Não faço nada! Estou aqui sentado a olhar para a parede, para o tecto, meio alegre. São aqueles momentos que os ingleses traduzem por silent evolution, uma evolução interior e silenciosa, em que qualquer coisa se vai formando durante três/cinco meses. Quando acabei o Arquipélago fiquei cheio de medo de não vir mais nada, mas marquei o dia 25 de Fevereiro [de 2008] para recomeçar e este novo livro foi rápido. Não é muito grande: 300, 350 páginas.

Mas é muito diferente!
Fiz um primeiro que era Alentejo, este é Ribatejo e estou a pensar fazer um da Beira Alta para completar a trilogia...

Não falo no aspecto geográfico!
Estou muito contente com o livro. Se calhar estou a ser inconsciente, mas as poucas pessoas que leram gostaram. Acho que marca um grande progresso em relação aos anteriores.

Faz lembrar o Coração das Trevas, do Conrad, vários livros dentro de um livro.
Sim.

Há também as antigas polifonias…
Porque é um romance mais tradicional, menos exigente, aparentemente, para o leitor e com as personagens vincadas. É uma prosa que não deve ser muito difícil de se ler.

Parece escrito de um jacto, com algo de Os Cus de Judas, de As Naus e daExortação aos Crocodilos?
Não tinha pensado nisso, mas quando estava a revê-lo fiquei de boca aberta.

Ouve-se a sua voz a dizer "não vou entrar por aí, seria fácil de mais nas emoções".
Há um diálogo porque, entre muitas coisas - e agora estou a olhar de fora -, é também um livro sobre como fazer um livro. As personagens interpelam o autor, querem ser autónomas e há um capítulo onde uma diz: "Não sei se sou pessoa se sou uma personagem, não sei quem é que eu sou. Serei só uma voz, terei densidade de carne, quem é que eu sou?"

Fala directamente com o leitor. Porquê?
Eu não falo com o leitor! As personagens e o autor é que se interpelam entre eles. E, por vezes, o autor interpela-se a si porque talvez seja também um livro sobre teoria da literatura, que é uma coisa sobre que gostava de escrever e nunca o farei porque só tenho uma vida. Precisava de ter dez vidas: oito para escrever, uma para ser médico e outra para escrever sobre teoria da literatura. O livro é muito ambicioso e talvez seja o mais ambicioso que escrevi porque queria que fosse muitas coisas.

O que pretendia deste livro?
Queria que fosse tudo! E queria que fosse também um livro sobre o que é escrever. NoCoração das Trevas há aquela passagem do nevoeiro - onde eles não vêem nada - da qual se pode perguntar o que é a arte de escrever? Até que ponto as vozes ou as pessoas que povoam o livro existem ou serão apenas invenções do autor? Até que ponto o autor as inventa ou cria ou existem de facto? Serão ou não reais? Aliás, elas interrogam-se a esse respeito também.

As personagens pedem para ter voz?
Há uma guerra e uma interacção entre as personagens e o autor e, normalmente, este tenta esconder-se nos livros. Aqui está exposto, com as suas incertezas e fraquezas. E quem é que comanda a escrita? É o autor, é aquilo que o habita, aquilo a que Llorca chamava o duende e o demónio que o habita? De onde vêm os livros é uma coisa que sempre me intrigou. De que região nossa? Ou será que é uma região de outra pessoa? Quem escreve? É a minha mão que escreve, é outra mão na minha mão? É meditado?

As personagens questionam essa origem…
Exactamente. Até que ponto o livro é do autor ou ele foi apenas um meio de que o livro se serviu para existir? É um problema que sempre se me pôs enquanto leitor em relação aos grandes livros. A Guerra e Paz é feita pelo Tolstoi ou através do Tolstoi? A grande literatura, a grande pintura e a grande música é feita pelos autores dos livros, dos quadros ou das sinfonias ou por uma outra entidade que, por hipótese, é comum a todos e que toma diferentes tonalidades consoante a personalidade?

Mas que outra entidade é que poderia ser?
Não sei, será Deus que escreve pela nossa mão?

Porque sentiu desta vez estas questões?
Essas perguntas sempre existiram em mim, mas agora já estou à vontade para as fazer e, também, à vontade do ponto de vista técnico para o fazer. Os outros livros têm-me obrigado, como diz o Beckett, a entender que "pensar é ouvir com mais força" e se estivermos atentos começamos a ouvir. Tinha-me dado conta de que as minhas duas/três primeiras horas de escrita são perdidas porque estou demasiado atento e só quando a atenção está difusa e ao mesmo tempo fixa - é quase um paradoxo - é que tudo começa. Há pessoas que escrevem de outra maneira, mas julgo que as grandes obras têm que ser produzidas assim, como os filhos que não são nossos, mas também não são de mais ninguém. Isso põe-me outro problema que é: até que ponto é legítimo ter o meu nome enquanto autor do livro.

Mas é o corpo usado para escrever o livro!
Pois. Uma vez o Eduardo Lourenço disse-me: "O que tu escreves faz-me lembrar aquele soneto do Pessoa que começa 'Emissário de um rei desconhecido'." Isto é muito curioso porque me torna modesto em relação ao que fiz, porque não o tenho como meu e a única coisa que fiz foi trabalhar. É evidente que houve uma parte minha, porque sempre me construí para escrever, mas, por exemplo, tenho muita dificuldade em ler seja o que for que escrevam sobre mim. Tenho sempre medo de secar a fonte, tenho de me proteger como a galinha protege os ovos e, acabados os livros, não olhar mais para eles, não ler textos de análise. Tento preservar esse mistério porque se o compreendesse deixaria de escrever. Cada vez mais me parece que sou apenas um meio e que qualquer outra pessoa que tivesse feito o mesmo caminho escreveria exactamente as mesmas coisas que eu escrevo.

Isso é pouco plausível.
Eu acho que pode ser assim e se alguém vivesse tão totalmente para isto como eu escreveria as mesmas coisas, as mesmas palavras pela mesma ordem e este livro era inevitável.

Não precisava da sua vivência para ser assim escrito?
Não sei, as nossas vivências são todas tão parecidas. Os problemas e as angústias fundamentais são sempre as mesmas, as questões que se nos põem também. Os primeiros livros provavelmente eram autobiográficos, os factos eram todos reais e não havia ali quase nada inventado, mas agora não. Isto não é autobiográfico, é nada eu sendo tudo eu - não sei explicar isto melhor - e, portanto, não me pertence. Daí não poder existir vaidade e o único orgulho é ter trabalhado muito. Este livro foi muito trabalhado, mas espero que o leitor não o perceba porque quando o leitor entende é porque o livro está falhado. Quando iniciei tinha duas frases: "Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?" e "Como esta casa é triste às três horas da tarde", mas andava há muitos livros a tentar a estrutura da corrida de toiros. Tinha-o tentado em vários, mas foi sempre impossível, este aguentou a estrutura e até parece que se foi encaixar nela. Era uma coisa que perseguia há anos e fiquei muito contente por o livro ter aceite esse desejo meu.

Sente-se que foi escrito mais depressa.
Talvez tenha demorado menos tempo porque andava com tudo na cabeça, mas tive medo de começar. Então, fui ao calendário que tenho no bolso e disse "começo dia 25 de Fevereiro", uma data completamente arbitrária. Durante dois meses já tinha feito as vozes, que ocupavam uma folha de papel, mas faltava saber a ordem porque falavam. Andei assim durante cinco meses, sem saber o que iriam dizer.

Desta vez as "vozes" impuseram-se mais?
Eram mais precisas, mas em relação ao pedófilo pensava: "Não vou ser capaz." Dá ideia que as fui aprendendo a ouvir melhor, o que é curioso no caso de um surdo. Aliás, a surdez foi modificando a maneira de escrever em mim porque passei a ouvir melhor o mundo.

Não consegue fugir à ordem das "vozes"?
Não quero escapar a nada, queria era estar dentro delas como chocos na tinta. Não se pode fugir a um livro, tem que se fazer o que o livro dá e quer porque o sinto como um organismo vivo. Se o leitor fizer surf por cima das páginas, vai ler isto como quem lê o livro mais simples que houver. Agora, se quiser mergulhar nele, tem muito trabalho porque não é como a porcaria que se vende nas estações dos correios.

Vai deixar de publicar quando o que mais surgem em Portugal são novos autores?
Surgem muitos? No nosso país?

Sim, que opinião tem dos novos "valores"?
Mas está a falar de escritores ou de livros? É que há pessoas que escrevem e há escritores. Não sei do que é que está a falar.

De livros...
Eu não os leio. Li os primeiros parágrafos de um nos Correios enquanto esperava pela minha vez.

E o que é que achou?
Acho que não vale a pena perdermos tempo nisso.

Mas vendem-se tantos livros em Portugal!
Isso sempre existiu, agora existem é outros meios.

Um sucesso que se deve ao marketing?
Penso que não. Uma tia minha quando via um quadro do Picasso dizia "aquilo também eu faço". Há livros que parecem esses quadros, daqueles que se compram nas feiras. Porque é que as televisões estão infestadas de novelas que são perfeitamente miseráveis? É o que as pessoas vêem! Na literatura sempre houve best-sellers e não acho mal que sejam publicados, dá alegria à pessoa que o escreve, dá alegria a uma série de leitores. O que não podem depois é dizer "pus os portugueses a ler". No outro dia vi uma apresentadora de TV a mostrar o seu novo livro e não tenho dúvida de que vai vender, mas daqui a 20 anos ninguém saberá quem foi essa senhora.

No último Natal houve um fenómeno, três irmãos Lobo Antunes publicaram um livro cada. Ficou surpreendido?
Julgo que o livro do João tem um pensamento original e é o melhor que publicou. O do Nuno, julgo que o escreveu com a alma e fico muito contente se vender muito porque gosto muito dele. Eu vejo-os essencialmente como médicos e faz parte da tradição médica escrever.

Nos últimos meses, perdeu vários amigos.
Chega a uma altura da vida em que se tem mais mortos do que glóbulos no sangue. O mundo vai-se despovoando… Foi o Zé Manel (Rodrigues da Silva) no princípio do ano, logo a seguir a Tereza (Coelho)… Morreu o Bourgois há pouco tempo, é sempre há pouco tempo... Com a Tereza Coelho era uma morte esperada mas uma situação muito complicada. Foi uma relação de anos, nunca tivemos uma discussão e tinha sempre razão nas críticas que fazia.


«Foi o miúdo de um ano que escreveu este livro»

Este livro poderia ter sido escrito por uma criança.
É uma coisa que ando a perseguir desde o princípio: o regresso a uma certa inocência primordial. Como aquele sorriso quase de criança de certas velhas de província as aldeias lá da Beira Alta, por exemplo, que sempre me fascinaram pelo modo como de repente ficam meninas. Há uma semana levei flores à minha mãe e parecia que tinha 15 anos e como ela mudou fisicamente! Nunca lhe tinha dado flores e, de um momentos para o outro, era uma miúda muito mais nova que eu - não sei que emoções estavam dentro dela! - e até os seus gestos mudaram.

Foi, então, uma criança neste livro?
Às vezes penso se a criança não tem logo ao nascer imensa experiência? Até que ponto não nascemos com uma sabedoria primordial que vamos perdendo com a educação que nos dão?

Porque o olhar da criança atravessa todo o livro!
Porque não? As crianças são tão assustadoras às vezes. Há uma fotografia minha de quando era um miúdo de um ano, e o olhar dele perturba-me imenso ainda hoje. Acho que foi essa criança que escreveu o livro. Não é extraordinário este olhar? (vai buscar aFotobiografia e mostra a foto) [ver na biografia a foto com um ano] Parece que tem o mundo inteiro dentro do olhar - perturbador - e essa fotografia continua a perseguir-me. Pergunto "quem é ele?" e parece que quanto mais observo esses olhos mais mundo encontro neles. Esta fotografia é, até hoje, a coisa que mais me perturbou na vida e que continua a perturbar, porque ele tem uma maneira de olhar que é terrível. Questiona, incomoda, julga. Parece estar a ver para além de si ou através de si. É engraçado porque a minha mãe tem em casa duas fotografias minhas, essa e outra que estava na contracapa de um livro e que a quando a viu num poster na montra de uma livraria - o meu pai ficou muito envergonhado -, entrou e disse que queria comprá-lo porque lhe lembrava esse olhar do miúdo. Não os acho parecidos, mas olhar a fotografia desse homem não me inquieta enquanto a do miúdo continua a sobressaltar-me. Faz-me sentir culpado quando não escrevo, parece que vem atrás de mim e acusa estar a ser infiel.

Não se libertou de todos os fantasmas?
Não são fantasmas, antes parece o mundo inteiro. Há livros que podem ser assinados por quem o fez mas este quem foi? O que é que isto tem a ver comigo, António Lobo Antunes? Nada! Porque não é meu, não me pertence, não tenho o direito de me sentir orgulho ou de dizer "fizeste uma obra-prima". Não fiz nada! Quer dizer, através de mim fez-se este livro mas é só isso. Portanto, todas as distinções que recebi e as que vão vir este ano fazem-me sempre sentir, ao recebê-las, a aldrabar as pessoas porque não me pertencem.

Quando não se sabe, é a Deus que se costuma atribuir as coisas!
Eu sou um homem religioso mas... Se calhar à entidade, seja ela qual for, que escreve todos os livros e que faz todas as sinfonias e pinta todos os quadros.

E que também faz a cadeira e a mesa?
Que faz tudo aquilo que é útil, porque ser arte é ser útil. Aqui estou a recuperar o conceito medieval de arte, daquilo que era imediatamente útil - fazia-se uma catedral para louvar a Deus - e não o actual conceito que aparece com os românticos. Embora Ovídio tivesse escrito "A minha obra há-de sobreviver ao tempo e ao fogo e ao ferro". E o Horácio dissesse "Construí um monumento mais duradoiro do que o bronze". E resiste.

Passou-se o século XX a dar ao Homem a autoria dos seus actos e agora nega-o.
Esses poetas latinos sentiam-se autores porque havia o furor poético de que Horácio falava: o presente dos deuses. Eram os deuses que se exprimiam através deles. Porque não recuperar isso? São os deuses que se exprimem através de nós. Escolhem uma pessoa ao acaso, um homem que não tem nada de especial. São assim uns escolhidos, que são muito poucos.

Aos cinco anos já queria escrever.
Aí não era querer, era tão natural como a pereira dar peras. "É isto que eu tenho que fazer, é isto que eu vou fazer, sou escritor!", pensava, mas havia muita vaidade e foi uma coisa de que demorei anos a livrar-me. Achava: "Eu trago uma coisa nova" - como é que dizia o profeta Isaías? "Eu trago um canto novo" - e estava completamente seguro disso. Agora compreendo que não me pertence a mim, o que é óptimo, porque há uma data de sentimentos que desaparecem: de competição, de inveja. No outro dia diziam-me: "Tu és muito afortunado, tiveste isso tudo em vida." E eu sinto que estou a enganar as pessoas porque que direito tenho de dizer "isto é meu"? O Bocage si, dizia "Isto é meu, isto não morre", e era dele de facto, e não morreu. Eu acho que não posso falar assim. Por outro lado , é péssimo, porque cada vez é mais difícil ler. Tudo o que leio é pior que aquilo que faço, tenho vontade de começar a corrigir tudo.

Cada vez há menos livros que o interessam?
Sim. Ao princípio pensava: uma pessoa vive com 500 livros. Há cinco pensava "vive com 100". Depois vive com 50, depois com 20. E agora chegava-me o Virgílio, o Horácio e o Ovídio. Há coisas que também gosto nos livros do Conan Doyle, não tanto pelo Sherlock Holmes, mas pela capacidade de recriar Londres muito melhor que Dickens. Eu não sou um grande amante do Quixote, como não sou do Fernando Pessoa, de quem tenho as maiores reversas, e penso que o tempo acabará por me dar razão. Acho o Livro do Desassossegoum amontoado de lugares comuns. Não é isso que os deuses cantam, não é assim que os deuses falam.


Diário de Notícias
16.02.2009

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