Lourenço Bray: opinião sobre Fado Alexandrino


A melhor escrita resulta essencialmente de um desequilíbrio. É por isso verdade o velho cliché de que as pessoas quando estão “deprimidas” ou em estados considerados frágeis criam mais, estão num estado mais introspectivo e por isso mais próximas das questões básicas do quem sou eu, de onde vim e para onde vou. Porque precisam de pensar nisso. Se a vida fosse feita de praia, surf, peixinho fresco assado, bom vinho, fogueiras crepitantes onde um grupo de eternos jovens se reúne para tocar guitarra e fumar cigarros que não dão cancro no pulmão, de olhos postos nas faúlhas de fogo que espiralam em direcção ao firmamento, se fosse assim, a literatura morria.

O escritor reage ao que o rodeia, transformando as suas experiências em escrita. A experiência de vida, a par da leitura, é fundamental para a escrita. É muito difícil escrever algo com substância com menos de 30 anos porque não se viveu o suficiente, nem se leu o suficiente. O escritor quase nunca pode agir para se rodear daquilo que em princípio o estimulará a escrever textos melhores, isso é a vida que escolhe. A vida do Lobo Antunes estará marcada por experiências extremas, elas aparecem no Fado Alexandrino. Não há limites, Lobo Antunes escalpeliza as relações humanas como se lhes fizesse autópsias e sentimos que estamos perante um limite da arte: a perfeição. Não existe outro escritor que domine melhor a escrita e a palavra como Lobo Antunes. Se fizessem o equivalente no cinema seria algo do calibre de um Ingmar Bergman.

Mas quero evitar autopsiar eu o Fado Alexandrino até porque não tenho jeito para isso. O problema evidente que a obra de Lobo Antunes suscita a qualquer escritor é que se pode ler muito e ser culto mas que não se pode fugir de uma vida completamente banal, estéril e desinteressante. Pode-se transformar a literatura que se leu, e o cinema e tudo mais em textos, até em mais literatura, mas faltará sempre uma marca, uma voz única, uma espécie de assinatura de vida que distingue um grande escritor de um assim assim erudito que nunca consegue escrever uma só linha sincera.

É verdade que enfrentei estas 600 páginas do Fado Alexandrino com o incentivo extra do livro me ter sido oferecido pelo Lobo Antunes na futuramente mítica sessão de autógrafos da Feira do Livro.

Estava um pouco amuado com ele, comecei a ler o Esplendor de Portugal e desisti às 100 páginas, aborrecido de morte com “mais do mesmo”. O Lobo Antunes exige uma aprendizagem progressiva para a sua linguagem e universo muito particulares. Este Fado Alexandrino é um excelente ponto de partida. Fica-se viciado. Não conhecem viciados em Lobo Antunes? Aquelas pessoas que estão sempre a ler um livro de Lobo Antunes? (…)

 
Lourenço Bray
04.07.2006

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