Rafael Narbona: opinião sobre Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura


Lobo Antunes fez-se romancista porque era incapaz de escrever poesia. A sua impotência perante o versejar tem produzido, não obstante, uma escrita deslumbrante que impregnou toda a sua obra de um forte tom lírico. A complexidade dos seus romances nasce desta peculiaridade, mas tal não significa que o fio narrativo tenha sido sacrificado em benefício da imagem ou da metáfora. Nada mais longe de Lobo Antunes que o esteticismo vulgar.

A sua maneira de narrar nada tem de malabarismos verbais, mas sim a busca da palavra essencial. A intenção de fundo está em exceder a simples aparência das coisas para revelar a verdade de personagens incapazes de compreender a natureza dos seus actos. Este propósito justifica o desvio dos assuntos, os espaços em branco, a destruição da sintaxe ou o recurso ao inacabado. Todos estes elementos se juntam em Não entres tão depressa nessa noite escura, compondo uma história que avança entre memórias, fantasias, confissões e surpreendentes rectificações, onde se coloca em questão tudo o que é narrado desde então.

Lobo Antunes organiza o romance em sete dias que correspondem aos sete dias da Criação. São sete dias que agregam em algumas horas as experiências de uma família reunida à volta de um pai moribundo. Uma intervenção cirúrgica servirá para reconstruir as peripécias de personagens da alta burguesia colonial do Portugal salazarista. Por baixo da aparente respeitabilidade esconde-se um passado duvidoso, onde a filha de um antigo governador de Moçambique se casará com um traficante de armas para salvar a maltratada economia da família. O casamento não evitará a catástrofe, quando a antiga colónia consegue a independência e o exílio forçado se impõe. Já na metrópole, não acabarão as fantasias sobre o esplendor perdido, mesmo quando os credores obtêm uma ordem de despejo que desapropria a família do seu único bem.

O narrador é Maria Clara, que reconstrói a história da sua família através dos fragmentos do seu diário, monólogos longos ou breves confissões a um psicólogo. É provável que o exercício da psiquiatria tenha ensinado Lobo Antunes a necessidade de destruir qualquer aparente ordem para reproduzir a maneira de como actua a memória. Talvez seja esta a razão para o narrador se desdobrar em outras vozes e inclusive chegue a questionar a sua idade e género. O resultado não é um enredo caótico mas uma exacta conjugação de vozes, com a unidade de uma grande oração. A polifonia do relato invoca isto a que poderíamos chamar a ética do leitor, segundo a qual não há experiência estética sem um esforço por complementar a obra que se lhe interpela.

Não entres tão depressa... é precedida de um poema de [Eugénio de] Andrade, que especula sobre a devastação do tempo. O curso das formas até à luz não poderá impedir a sua sentença de sombra. Essa é a conclusão de Maria Clara, possível filha ilegítima, adolescente que descobre a sua condição de mulher adulta e mãe, quando ainda tenta encaixar os fragmentos da sua infância. As suas incursões ao baú do sótão apenas lhe permitem resgatar uma foto velha com uma criança balançando num cavalo de madeira. Uma imagem desbotada para recompor um passado escurecido pela culpabilidade, o medo e a mentira. Maria descobrirá que nada é definitivo. A transformação faz parte da natureza das coisas. O murmúrio dos freixos ou a luz nas glicínias insinuam-lhe que não somos nós mas as coisas que nos observam, evidenciando a nossa inserção num mundo onde apenas se reflectem as nossas palavras. Definitivamente, uma grande obra que não se conforma em narrar uma história, antes tenta explorar as possibilidades da linguagem para explicar as relações - sempre equívocas, sempre imperfeitas - entre a memória e a experiência. Tal como Benet ou Faulkner, Lobo Antunes pretende muito mais do que escrever romances. A sua intenção é criar um mundo. Os seus livros corroboram esta sua condição de demiurgo.
 

por Rafael Narbona
05.06.2002
citado de El Cultural
[traduzido do espanhol por José Alexandre Ramos]

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