Belém Barbosa: sobre Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo


«existo ao mesmo tempo em todos os lugares da minha vida»

A memória é um dos elementos fundamentais da obra de Lobo Antunes. Cada ser é, em cada momento, invadido pelo seu passado, incapaz de controlar memórias que se atropelam umas às outras e se misturam com o presente. As personagens são complexas, muito ricas de passado e sequiosas de comunicar, envoltas que estão no silêncio, no esquecimento, num não-lugar familiar e social.

«a única coisa que pretendo é que me deixem em paz sozinha comigo ou antes sozinha com isto que não sou eu e em que me tornei»

Essa sede de comunicação torna o discurso tenso e ritmado, em que pontuação omissa pela urgência de falar é compensada pela expressividade e pela poesia.

Tal como o tempo/memória, também “o que sou; o que penso que sou; o que gostaria de ser” não são estanques. Por vezes, o que é afirmado como real não é mais do que uma máscara/projecção dos desejos, como é expressa, por exemplo, no título da obra.

«o tempo imóvel, quer dizer muita coisa a passar em mim»

Lobo Antunes disse em várias entrevistas que cada livro é a reescrita dos anteriores. Neste seu último romance, a ligação aos demais livros é feita pelo reaparecimento de imagens e personagens que marcaram leituras anteriores, como o comboio, uma capeline, os carvalhos impossíveis. As próprias personagens brincam com o escritor, provocam-no: “deste-te bem com os pavões noutro livro?”

Apesar dos constantes reflexos de livros anteriores – provavelmente uma finíssima rede de reencontros, uma filigrana que sugere releituras, este livro não necessita de um profundo conhecimento prévio da obra antuniana; beneficia-a, é certo, mas não invalida a leitura menos experiente.

Como sedução primeira, um interessante exercício de germinação do livro, que ocupa o seu prólogo: o narrador (escritor?) inicia a narração com lentas hesitações, (não sei se ela disse; se calhar; não estou certo...), e avança não muito até questionar “será que remendo com palavras ou falo do que aconteceu de facto”, assim lançando um mote para conhecer, camada a camada, um ser que se expõe.

por Belém Barbosa
Novembro 2004

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