Ana Margarida Ramos disserta sobre As Naus


A ficção de uma viagem de regresso à pátria. Um olhar sobre As Naus de António Lobo Antunes
   
Resumo
«Era uma vez um pequeno povo europeu que, embarcado há cinco séculos, depois de muito viajar pelas sete partidas do Mundo, regressa, enfim, à casa tão pobre quanto partira - e deita contas à vida, indeciso ainda quanto ao rumo a traçar. Que fazer, agora? Ou antes: como refazer-se a si próprio numa situação nova, original, em cinco séculos de história volvida?» (Serrão 1989:34)
«Imagine que os retornados voltaram nas naus que sobraram aos naufrágios, e que os caixotes que se acumulavam em Alcântara tinham escritos nomes destes: Luís de Camões, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Diogo Cão, Francisco Xavier, Manuel de Sepúlveda.» (Pedrosa 1988:70)

Inserindo-se numa linha ficcional que reflecte a contemporaneidade portuguesa ou a sua história mais ou menos recente, António Lobo Antunes, em As Naus, recria, de uma forma original pelo recurso à paródia e à desconstrução, o conceito de Portugal e a especificidade de ser português. O romance em questão tem como ponto de partida duas histórias diferentes de um mesmo país (a contemporânea e a de há cinco séculos) que são entrecruzadas e metaforizadas de tal modo que tudo é possível. O fio condutor para a leitura da obra As Naus passa por uma visão negativa e pessimista da sociedade portuguesa dos nossos dias. A parodização de figuras e acontecimentos funciona, de acordo com Hutcheon (1985), como uma aproximação afectiva aos elementos retratados e como um afastamento crítico desses mesmos objectos. Aqui também só se parodia aquilo que se ama, se admira e às vezes quase se venera. A história de Portugal (aqui história de Lisboa) apesar de pintada a tons carregados e amargos, dá grandes lições de amor, de orgulho e de patriotismo. Às vezes, é pelo lirismo da alma e da poesia que encontramos a definição de um povo: «pareceu-me que o Tejo cheirava ao odor do teu corpo quando acorda, indiferente ao meu amor por ti» (Antunes 1988: 187) ou «a tonalidade das ondas contra a pedra mudara, agora transparente e doce como o som dos teus olhos» (idem, ibidem: 22).

Esta é, pois, uma história de regresso a casa, ou melhor, de retorno à pátria, dos habitantes dos países africanos recém-independentes, após a «revolução de Lixboa» (Antunes 1988:228). Mas, nem o Portugal que encontram é o mesmo que deixaram anos (ou séculos?) atrás, nem estes retornados são, na sua totalidade, a gente anónima que, em número superior ao meio milhão, desembarcou em Lisboa, no cais de Alcântara, ou fez o trajecto através da ponte-aérea.

É então de descolonização e de retorno que se fala, mas também da partida de navegadores e heróis há cinco séculos atrás. Aliás, os tempos da partida e da chegada ligam-se e misturam-se de tal maneira que estão sempre presentes no imaginário dos retornados aqui transformados em personagens de romance. A própria concepção do tempo neste romance levanta-nos alguns problemas, se tentarmos encontrar no tempo uma linha condutora do romance.

Apesar da ironia na escolha das personagens e do cómico patente em algumas situações, fruto do jogo com tempos e personalidades diversas, o que ressalta deste romance é uma imagem de Portugal profundamente desiludida e dolorida. Tudo parece ter acontecido em vão. O que resta de tantas viagens, descobertas, partidas, naufrágios, epopeias e poetas é um grupo de tuberculosos que, sentados numa qualquer praia, olham o mar e esperam que dele venha a salvação nacional. Portugal surge aqui sem presente nem futuro e parece até perder os vestígios de um passado que muitos querem, à viva força, glorioso.

Por outro lado, a desmitificação das figuras históricas permite a sua humanização e consequente aproximação. Ao pegar em Camões amargurado às voltas com a sua epopeia na gare de Alcântara, em D. Manuel com a sua coroa de plástico, ou ainda em D. Sebastião esfaqueado em Marrocos, o autor persegue a alcança objectivos distintos: critica um povo que vive, ainda hoje, demasiado ligado ao passado; parodia um género literário (romance histórico) também ele excessivamente utilizado, ao mesmo tempo que recorre a alguns dos seus condimentos; reflecte sobre a actualidade de Portugal e desmitifica uma história e alguns mitos (D. Sebastião e Alcácer-Quibir), esvaziando a memória nacional e chamando um país à realidade que continuava a ignorar. É como se Portugal tivesse adormecido durante longos anos (séculos) e fosse agora necessário acordá-lo rapidamente e retirá-lo do adormecimento e da letargia em que se encontra de qualquer forma.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, A. L. (1988): As Naus, Lisboa, Publicações Dom Quixote
HUTCHEON, L. (1985): Uma teoria da paródia, Lisboa, Edições 70
MATTOSO, J. (1993): História de Portugal (VIII volume), Círculo de Leitores
PEDROSA, I. (1988): "Entrevista com António Lobo Antunes" in Revista Ler, nº 2
SERRÃO, J. (1989): Temas da Cultura Portuguesa II, Lisboa, Livros Horizonte

 
por Ana Margarida Ramos
Revista da Universidade de Aveiro - Letras, nº 18, Aveiro, pp. 7-18 (2001)

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