Entrevista de José Jorge Letria - 27.11.1990


Conversas com Letras – Entrevistas com Escritores (*)
Entrevista de José Jorge Letria - 27.11.1990


Nas coisas que diz, consegue, como poucos, misturar o tom manso do afecto com o gume afiado da ironia. Sabe que há quem goste muito dos seus livros e quem goste pouco, porque o seu modo de escrever e a imagem que de si próprio passou a dar aos outros não consentem neutralidade ou indiferença.

Uma década bastou para o tornar um dos nomes mais importantes da ficção portuguesa contemporânea, com vários prémios ganhos no País e no estrangeiro.

Confessando-se poeta frustrado, revelou em primeira mão, nesta entrevista, que acaba de se estrear como autor de textos de canções num LP de música de inspiração africana em que intervém o cantor e compositor Vitorino.

Não ignora que o que diz é frequentemente incómodo para alguns e polémico para muitos outros. A experiência de médico psiquiatra, profissão que continua a exercer no Hospital Miguel Bombarda, talvez o tenha ajudado a conhecer bem as reacções que é capaz de desencadear.

Goste-se ou não da sua obra, é forçoso reconhecer que escreveu alguns dos melhores livros portugueses dos últimos anos. O que agora acaba de ser publicado [Tratado das Paixões da Alma], com um título belíssimo que remete para os grandes textos da filosofia, vai de novo confrontá-lo com o público e com a crítica. Assume-o como uma história de paixões e de almas, na qual se joga a força inteira dos sentimentos na sociedade portuguesa contemporânea.

Esteve para ter outros títulos antes daquele com que agora surge nos escaparates das livrarias.

Para António Lobo Antunes, que gosta de falar dos amigos que a literatura o ajudou a fazer e a consolidar, à publicação de cada livro segue-se um «tempo vazio», no qual podem ou não fermentar novas ideias e novos projectos de escrita. Uma coisa é certa: na sua cabeça, enquanto vai escrevendo, só cabe um livro de cada vez. A coabitação de projectos e de esboços é experiência que não conhece e que, do seu ponto de vista, é até um pouco estranha e difícil de explicar.

Mesmo quando parece apostar numa toada defensiva, dá-se a conhecer muito mais do que pode pensar-se, porque não sabe nem quer ocultar sentimentos, antipatias, preferências, afectos e alguns ressentimentos. Da soma de todas essas facetas pode resultar um retrato de corpo inteiro que os seus livros, por serem obras de ficção, não têm forçosamente de confirmar.

Entrevistá-lo é sempre uma experiência diferente. O pretexto para esta conversa foi a saída de um novo livro, mas falou-se sobretudo do homem e da sua relação com a escrita e com o mundo dos outros, dos que escrevem e dos que só lêem.

«Como todos os meus livros – revela – este teve vários títulos antes de se fixar no que agora tem. É um título cartesiano, que se liga a livros de Descartes e Leibniz. É também, em parte, uma homenagem a eles. É um livro acerca da paixão e dos vários tipos de paixão. A história trata, na minha ideia, das várias formas de paixão de alma que existem; da paixão, do ódio, do afecto e da amizade. Os sentimentos nunca são quimicamente puros. São sempre muito contraditório dentro de nós. Os sentimentos têm sido um tema central no nosso país».

No princípio, António Lobo Antunes queria situar as personagens, os sentimentos e a acção no campo da extrema-esquerda em Portugal, «mas depois a história foi-se desviando para a relação desses dois homens e das pessoas que se cruzam na vida deles. É afinal a relação de dois homens entre eles, com o mundo e com os outros, tudo isto no Portugal de hoje».

O escritor tem consciência de que «vivemos numa época estranha em que as poeiras levam tempo a assentar» e quis que o seu livro também levasse esse facto em consideração.
Amigo de poetas e de prosadores, está em condições de afirmar que «a nossa geração está a falar muito de Portugal».

Neste mundo das letras tão pouco imune a fenómenos como a inveja, a intriga e o ressentimento acumulado, António Lobo Antunes tem a preocupação de deixar claro o seguinte:

«Não tenho razões de queixa de nenhum escritor em Portugal. Tem sido uma relação exemplar. Há aspectos nessa relação que às vezes até me deixam bastante comovido. Todos estamos a fazer coisas diferentes e acho que essa diversidade é muito a nossa riqueza. Tenho recebido de outros escritores provas de amizade e de camaradagem verdadeiramente exemplares. Dou o exemplo da Olga Gonçalves que teve a elegância de me mandar uma crítica a um livro meu saída num jornal dos Estados Unidos. Neste meio acabamos por ter amigos bons. Os inimigos não prestam, porque acham, no fundo, que são maus escritores. Nunca senti inveja e competição da parte dos meus camaradas de escrita».

Mesmo temendo cair em pecado de omissão, fala de amigos escritores cujas obras admira e cujo exemplo não perde de vista: José Cardoso Pires, Agustina Bessa-Luís, João de Melo, João Miguel Fernandes Jorge, Lídia Jorge, Mário Cláudio, Pedro Tamen, Egito Gonçalves e Eugénio de Andrade. Aqui fica o registo dos nomes, tal como foram mencionados, no tom afectuoso da estima e da admiração.

«Acho que os escritores percebem muito melhor o que escrevemos que os críticos. Os escritores têm, afinal, a mesma humildade dos leitores comuns. Os críticos raramente entendem o nosso trabalho. O Jorge Amado, numa carta que me mandou sobre o Fado Alexandrino dizia, mais ou menos, que não tinha nem vocação nem pretensão de ser crítico, mas que distinguia o bom do ruim».

Dito isto, Lobo Antunes não hesita em afirmar que «quem me ajudou sempre foram os escritores; nunca os críticos». E vai mais longe, sempre com as palavras directas de quem não quer deixar pelo eufemismo aquilo que pensa.

«Aprendi sempre mais com escritores como o José Cardoso Pires ou a Maria Velho da Costa, do que com aqueles que têm escrito sobre os meus livros. Aprendi sempre mais com pessoas como o Pedro Tamen, que além de ser um grande poeta, de quem sei poemas de cor, é um homem de uma generosidade enorme e de uma grande importância cultural. Há também o caso de um poeta como o Egito Gonçalves, de quem também sei poemas de cor, que tem realizado um trabalho excepcional com os poetas novos na Limiar. E, contudo, são pessoas que não costumam ser reconhecidas por aquilo que valem».

Com a preocupação de não omitir nomes nem obras, faz uma alusão especial a Alexandre O’Neill e a Manuel da Fonseca, dizendo sobre o segundo que «é uma das pessoas mais fascinantes que eu conheci e da qual pouco se fala». Depois, fica o lamento e a condenação:

«Nós, que somos um país tão pequeno, não nos podemos dar ao luxo de esquecer poetas como eles e dificilmente lhes poderemos agradecer tudo o que fizeram».

Tem o cuidado de mencionar o trabalho de Pedro Tamen, com o Círculo de Poesia, da extinta Moraes, que «até ajudou a divulgar poetas mortos como o Cristovam Pavia».

«Tenho muito orgulho em ter como amigos poetas assim – enfatiza – que, com alguns dos seus poemas, me têm até ajudado a vencer algumas crises de amor».

É conhecida a relação privilegiada que António Lobo Antunes tem com os poetas e com a poesia. Explica de onde lhe vem essa afinidade e essa paixão:

«Sou um poeta frustrado. Comecei por escrever poesia. Estreei-me aos 14 anos no Diário Popular e por volta dos 20 foi muito penoso descobrir que não tinha talento para ser poeta e descobrir, ao mesmo tempo, que não podia viver sem a escrita. Foi assim que comecei a escrever ficção. Continuo hoje a ser um grande leitor de poesia e se tenho inveja de alguns poetas é porque gostava de escrever como eles. Nem é bem inveja, é só um desejo de escrever também assim.»

Em parêntesis da conversa ficam fragmentos de poemas belíssimos citados de cor. Pertencem todos a poetas que admira e que o têm acompanhado, com a voz secreta e cintilante da poesia, ao longo da vida.

E no diálogo estão sempre presentes as palavras «afecto» e «amizade», que suscitam ao escritor este comentário:

«Temos medo de dizer de homem para homem “gosto de ti”, com medo de que isso seja confundido com homossexualidade».

Dos académicos, dos universitários, Lobo Antunes confessa gostar pouco, mas faz uma excepção:

«Talvez a única pessoa universitária que eu admiro seja o Arnaldo Saraiva, que é também um poeta, e a quem Portugal deve a grande divulgação do Carlos Drummond de Andrade».

Apesar de falar insistentemente de amizade e de afecto e de ter a coragem de dar nomes às pessoas e às obras de que gosta, Lobo Antunes dá, por vezes, a ideia de que se sente mal amado.

«Em relação aos leitores e aos escritores não sou um mal amado. Em relação aos críticos, sim. Acho que sou um bom alvo. É fácil dizer bem de outras pessoas. E é curioso que muitos dos que dizem mal dos meus livros tenham começado precisamente a escrever à Lobo Antunes. O Jorge de Sena fala muito bem disto: temos a mania de confundir as pessoas com os livros. Acho que marca pontos a meu favor o facto de as pessoas terem uma relação forte, por vezes violenta, com os meus livros. Os estrangeiros, talvez por não estarem envolvidos nesta espécie de bidé em que estamos metidos, vêem-nos de outras maneira. Alguns escritores que são licenciados aqui, não têm a mínima importância no estrangeiro. Depois há as modas impostas por pessoas que dominam os jornais através de amizades ou de outras relações que desconheço».

O autor de Memória de Elefante tem a noção de que hoje, ainda «a quente» e sem a indispensável distanciação crítica que só o tempo é capaz de dar, «é muito difícil distinguir o mau do bom». Mais:

«É muito difícil – afirma – dizer ao certo o que é que vai ficar. Todos acabamos com a boca cheia de terra e queremos deixar as coisas que nos perpetuam. Fiz uma filha antes de embarcar para a guerra em África, com a ideia de que me perpetuaria se morresse. Com os livros é um bocado a mesma coisa. O nosso desejo é sempre sermos lidos depois de mortos».

Lobo Antunes aproveita, num tom que é, ao mesmo tempo, mordaz e lapidar, para dizer como costumamos reagir a estas coisas da posteridade.

«O sonho de todos os escritores portugueses é obterem o reconhecimento, é descerem a Avenida da Liberdade em carro aberto a acenar à multidão. Isso é infinitamente desculpável, porque sofremos muito quando escrevemos». Cita a esse propósito uma frase de Graham Greene, que considera ser um grande escritor, a quem o Nobel, com plena justiça devia ter sido dado.

Em onze anos, António Lobo Antunes construiu uma obra vasta e complexa, polémica e em muitos aspectos inovadora, que continua a obter largo reconhecimento internacional.

«Estou há onze anos a publicar mas há muito mais tempo a escrever. Estes onze anos permitiram, de facto, a minha profissionalização. Para isso contribuíram as vendas em Portugal e no estrangeiro e um agente americano que trabalha comigo há anos e que conheci através do escritor brasileiro Márcio de Souza, que lhe deixou um exemplar de Os Cus de Judas em Nova Iorque. Era uma altura em que praticamente não havia portugueses contemporâneos traduzidos no estrangeiro, com excepção do Namora, nalgumas pequenas editoras. Tudo isto alterou a minha vida no sentido de passar a ganhar menos, porque ganharia muito mais como médico. O Jorge Amado dizia-me, há tempos, que conhecia muitos editores ricos, mas escritores não. Gastamos muito em impostos e pagamos tudo aquilo que o agente investe em nós. Depois tive a sorte de ter os tradutores que gostava de ter. Ter tradutores bons é muito importante. Quando Blaise Cendrars traduziu A Selva, de Ferreira de Castro, fez dele um grande livro. Tudo isto foi conquistado muito lentamente. E também houve a sorte, que é um factor que pesa nestas coisas».

Para Lobo Antunes os melhores críticos do trabalho dos escritores de ficção narrativa talvez sejam os poetas. Recorda que Alexandre O’Neill afirmava que «escrever é como viver», dizendo tudo à maneira de quem deixa quase nada dito. São assim os poetas e as suas sínteses.

«Nunca tive tanto sucesso no estrangeiro como com a tradução de As Naus – refere –, que a esquerda atacou por achar que estava a meter-me com a descolonização e a direita por pensar que estava a denegrir os seus heróis. Nunca tive críticas tão hiperbólicas como as suscitadas por esse livro no estrangeiro».

Mantendo com Portugal uma típica e cíclica relação de amor-desamor, Lobo Antunes confessa não ter «mais vontade de ir embora». E revela:

«Tive recentemente um convite do governo alemão para me ir embora daqui, com casa e dinheiro, mesmo sem escrever. Mas nem perante essa hipótese fui capaz de partir. Se escrevo em Portugal, com palavras portuguesas, é aqui que tenho de estar».

E é aqui que surgem e se acumulam sempre novas experiências: as da escrita e as dos sentimentos.

«Poeta frustrado que sou, andei agora a fazer letras de canções para um disco de música africana. É um disco com o Vitorino. São tudo textos meus».

Falando do que é o trabalho oficinal do escritor, refere a dificuldade que os prosadores em Portugal costumam ter quando constroem diálogos.

«Neste século, entre os portugueses, quem melhor faz diálogos é o Cardoso Pires, sobretudo nos contos. Eu tentei arranjar uma espécie de monólogos sobrepostos. É uma dificuldade minha, a de fazer diálogos. Como sou um lírico, faço tudo carregado de autobiografia. Às vezes o que as pessoas acham que é bom tem a ver com estratagemas nossos. No fundo não é uma técnica, é uma defesa das nossas dificuldades».

Essas dificuldades são diariamente enfrentadas, num trabalho regular e sofrido a que o escritor não foge por o achar essencial, mesmo quando é doloroso e desgastante.

«Todos os dias escrevo, mesmo agora que há o vazio provocado pela saída de um novo livro. Nunca percebi como é que há escritores capazes de terem vários livros ao mesmo tempo dentro da cabeça. Como não sou Balzac, só tenho aquele que estou a escrever. O que sinto, quando escrevo, é a distância entre as emoções o que se sente já a frio. Por isso, muitas vezes o resultado final do livro acaba por ser frustrante. Por vezes quando vamos visitar os livros que escrevemos, sentimos que há defeitos enormes».

E as ideias para um novo livro como surgem?

«Começam a cristalizar-se pouco a pouco. Chega a ser angustiante. Às vezes há anos de intervalo. As minhas filhas dizem que sou um chato porque, quando escrevo, só escrevo, e quando não escrevo estou só a olhar para as paredes. Para um próximo livro já tive umas ideias mas, como é costume dizer-se, quando a esmola é grande o pobre desconfia. Isso das ideias é complicado. É como o cão que esconde um osso e anda depois a farejar para descobrir onde o deixou, a ver se o encontra, sem saber se chegará alguma vez a encontrá-lo. No fundo, o que eu gostava era de escrever poesia se tivesse talento para isso».


27 de Novembro de 1990

transcrito por Gonçalo Mira de:
LETRIA, José Jorge, Conversas com Letras – Entrevistas com Escritores, Editorial Escritor, 1995
(*) Nota: O livro é composto por entrevistas feitas por José Jorge Letria publicadas no Jornal de Letras e nas revistas Autores e Tempo Livre. Não existe, na entrevista a Lobo Antunes, indicação em qual destas publicações foi originalmente publicada.

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